Ninguém espera a Inquisição Espanhola, mas todos aguardamos esta despedida dos Monty Python

Os lendários Monty Python dão esta terça-feira o primeiro dos seus espectáculos de despedida, esgotados, na O2 Arena, em Londres. Até dia 20 de Julho, John Cleese, Eric Idle, Terry Gilliam, Michael Palin, Terry Jones e, em vídeo, o falecido Graham Chapman apresentar-se-ão dez vezes em palco.

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Os Monty Python, Eric Idle, John Cleese, Terry Gilliam, Michael Palin e Terry Jones fotografados no London Palladium em Londres no dia 30 de Junho 2014, esta segunda-feira AFP PHOTO/JUSTIN TALLIS

Um homem entra no barbeiro. O barbeiro pergunta: “Como quer que lhe corte o cabelo?” Resposta: “Em silêncio.” Não sendo nova, a piada não perdeu a graça. Não sendo nova? É absurdamente antiga. Surge em Philogelos (Amante de Gracejos), compilação romana de humor, escrita em grego e datada do século VI d.C., e a piada será até mais antiga do que isso. O protagonista é identificado como sendo Archelaus, rei macedónio do século V a.C.

Não, a humanidade não mudou tanto quanto nós, modernaços habitantes do século XXI armados de mil gadgets informáticos e de fina ironia, sempre ironia, gostaríamos de supor. E se uma piada criada por um monarca anterior a Cristo ainda pode ter graça, então que dizer do humor que, há 45 anos, começou a ser criado por um bando genial formado por cinco ingleses e um americano desviado para Londres? Não será a vertigem tecnológica e as mudanças culturais e sociais das últimas décadas a transformar aquele humor em anacronismo. Há, afinal, um antes e um depois dos Monty Python.

Houve o antes, porque eles são filhos de um tempo e de um meio específicos e não nasceram por geração espontânea, brilhantes a partir do momento em que se reúnem em 1969 os dois ex-estudantes de Oxford, Terry Jones e Michael Palin, os três de Cambridge, John Cleese, Graham Chapman e Eric Idle, e o americano cartoonista com ambições de vir a ser cineasta (e foi, assinando filmes como Brazil, 12 Macacos ou Delírio em Las Vegas). Todos tinham absorvido as lições de Charlie Chaplin e Buster Keaton, tinham crescido com a revolução no humor radiofónico protagonizado pelo Goon Show de Peter Sellers, Spike Milligan e Harry Secombe, tinham assistido ao mesmo Milligan e a David Frost a quebrarem as regras do humor televisivo, enquanto Terry Gilliam, filho da contracultura americana da década de 1960, nunca escondeu que tinha em Meliés, o inventor da ficção científica no cinema, uma das suas maiores inspirações.

Houve portanto um antes. E houve o depois, quando aquela amálgama delirante de nonsense, sátira, irreverência, erudição, desdém pela autoridade sob todas as formas e iconoclastia insaciável (nada estava a salvo), se tornou um adjectivo (“pythonesque” figura nos dicionários de língua inglesa). Mundo fora, milhões apropriaram-se dos sketches do programa televisivo Monty Python’s Flying Circus (Os Malucos do Circo, em Portugal), exibido na BBC entre 1969 e 1974, ou de cenas saídas da cinematografia posterior – citamos a trilogia imaculada: Monty Python e o Cálice Sagrado a trocar as voltas à lenda do Rei Artur em 1975; A Vida de Brian a subverter em 1979, não a história de Cristo, como tanto católico indignado que não viu o filme à época achava, mas o ruído de quem o seguiu e o tresleu; e O Sentido da Vida, a despedida em 1983, colecção de sketches admiráveis “explicando” a humanidade desde o nascimento até à morte – spoiler: não há resposta para a questão colocada pelo título.

A despedida e as hipotecas
Depois do antes e depois do depois chega o agora. Hoje. Quarenta anos depois de pisarem um palco inglês pela última vez, 16 depois de os termos visto juntos no Aspen Comedy Festival, nos Estados Unidos, os Monty Python estão de regresso. Às 19h30, o colectivo a quem chamaram “Os Beatles do humor”, porque nada foi igual depois deles e porque cada um deles se transformou em celebridade pop, sobem ao palco da O2 Arena, em Londres. Estarão todos lá (ou quase). O espectáculo tem por título Monty Python Live (mostly) não só pela provecta idade dos participantes, todos septuagenários, mas porque estão mancos desde 1989, ano em que Graham Chapman sucumbiu a um cancro. Mas Chapman, claro, não estará verdadeiramente ausente: os companheiros envelhecidos contracenarão com o jovem companheiro resgatado aos sketches históricos e projectado em ecrã.

O que interessa aqui é esta oportunidade caída dos céus. A despedida definitiva. Ainda não subiram ao palco e a aclamação já é ensurdecedora. Inicialmente, era apenas um espectáculo – os bilhetes voaram em 43,5 segundos. Passaram a cinco e os cinco tornaram-se dez, a decorrer entre hoje e 20 de Julho. No último dia do espectáculo, o fenómeno será verdadeiramente global: 450 cinemas no Reino Unido e 1500 no resto do mundo transmitirão em directo o espectáculo derradeiro. Em Portugal, poderemos vê-lo em duas salas nos cinemas UCI do El Corte Inglés (lotação já esgotada), numa do Dolce Vita Tejo, na Amadora, e noutra no Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia.

No final, os Python suspirarão de alívio. Missão cumprida. Não a de maravilhar o mundo uma última vez com irrepreensíveis pedaços de humor, mas o de ter cumprido os objectivos propostos, para utilizar linguagem do futebol moderno. A saber: pagar uma hipoteca de Terry Jones; pagar os custos judiciais de um processo movido, e perdido, contra o produtor de Monty Python e o Cálice Sagrado; cobrir a pensão anual devida por John Cleese à sua última mulher. Na conferência de imprensa em que anunciaram o regresso, foram essas as justificações para os espectáculos no O2, que será composto pelos sketches obrigatórios, por alguns outros que nunca foram até agora levados a palco e pelas canções que também fizeram a história do colectivo (Always look on the bright side of life será a mais célebre). Serão acompanhados por Carol Cleveland, considerada a sétima Monty Python, e por duas dezenas de dançarinos e dançarinas. Novidades, obrigatoriamente poucas.

John Cleese recordava recentemente um concerto de Neil Diamond a que assistira em que o cantor fora vaiado quando insistiu em tocar canções novas. O espectáculo dos Monty Python será como ver um ao vivo dos Rolling Stones na actualidade. Clássicos a ocupar 90 por cento do alinhamento e o público a “trautear” os diálogos dos sketches. Não lhes exigamos que regressem para abanar as estruturas todas, para chocar e maravilhar em igual medida.

Em 2008, Terry Jones dizia ao Ípsilon já não acreditar, como acreditava no início dos Monty Python, que o humor pudesse contribuir como gatilho para transformações sociais. “A única coisa que o humor pode fazer é assegurar às pessoas que há quem pense da mesma maneira”, declarou. “Não penso que vá converter alguém, mas penso que nos faz sentir acompanhados e nos dá uma voz.” Digamos então que, antes de eles aparecerem, não sabíamos que tínhamos aquela voz.

Proust e um papagaio morto
Mas o que tinha de tão especial o humor dos Monty Python, nome de origem nunca esclarecida? – tanto podia ser referência ao lendário general Montgomery, como a um Monty anónimo, bêbado local num pub frequentado por Michael Palin. Tudo, na verdade.

Antes de mais, a capacidade de perseguir, defender e aperfeiçoar uma ideia – John Cleese afirmou em tempos que sim, que havia improviso no trabalho dos Monty Python: estava nas vírgulas dos guiões. Nuno Markl ilustra-o ao falar de dois dos sketches que mais admira. “Um é o Bicycle Repair Man: a ideia de que num mundo integralmente povoado por super-homens o super-herói que eles chamam é o tipo que arranja bicicletas é de uma simplicidade genial”, defende. O outro é um dos mais célebres momentos Python, aquele em que um homem se exaspera perante o dono da loja de animais que não só lhe vendeu um papagaio morto, como se recusa a reconhecer o rigor mortis do animal. “Representa tudo o que as regras dizem que a comédia não deve ser: é palavroso, longo e não tem final. E é das coisas mais hilariantes e geniais de sempre”, diz. 

Sobressaía ainda no seu humor a forma como jogavam com a linguagem e com anacronismos  – e eis que a Inquisição Espanhola entra de rompante numa sala de classe média inglesa dos anos 1960. A forma como satirizavam constante e consequentemente a autoridade, qualquer tipo de autoridade – acompanhe-se um homem que diz chamar-se Hilter, que veste uniforme militar, tem bigodinho e um curioso sotaque germânico, a tentar relançar um certo projecto inacabado na parvónia inglesa, ignorado por todos.

O talento para o humor físico, de que será expoente máximo o Ministério dos Andares Patetas protagonizado por John Cleese (uma prótese na anca e um joelho operado asseguram que Cleese não o interpretará na O2 Arena). A subversão das regras da narrativa e do humor televisivo: raramente havia as chamadas “punchlines”, com o sketch a terminar abruptamente, dando início a outro ou sendo cortado para que as animações de Terry Gilliam, anárquicas, cruzando imaginário vitoriano e arte clássica com colagens de uma comicidade violenta (abundam explosões e cabeças decepadas) prolongassem o pasmo de quem via.

O cronista e poeta Pedro Mexia vê no seu sketch de eleição, Summarize Proust Competition, uma boa definição do humor dos Monty Python, esses “rapazes de Oxford e Cambridge que conjugam referências eruditas (a Recherche), populares (os concursos televisivos de 'cultura geral') e brejeiras ('the girl with the biggest tits')”: “Não é preciso ter lido Proust para gostar da ideia de uma competição que tem como objectivo 'resumir' em segundos um intrincado romance com sete volumes: basta ter uma vaga noção de Proust, e do seu romance em sete volumes”, aponta. “Ao mesmo tempo, o 'concurso' tem tudo a ver com a memória e a passagem do tempo, que nos derrota sempre. Quer dizer, é um sketch ao gosto de Proust, que só discordaria do critério do júri”, conclui.

Acrescente-se ainda a forma como nos comprometiam, espectadores, com o que se desenrolava no ecrã. Filipe Homem Fonseca, humorista e argumentista, destaca como um dos seus sketches preferidos Confuse-A-Cat, onde um casal de meia-idade desespera com a inactividade do seu gato, imóvel no jardim. “É uma lição de comédia – às vezes a piada não está tanto no gag em si, mas na reacção que se tem a ele”, diz. “Aquele gato somos nós, o público de Monty Python, em estado de perplexidade perante o nonsense que se desenrola à nossa frente.”

Não surpreende que Herman José recorde o momento em que os viu na RTP2. “Fiquei completamente avassalado com o sketch sobre o SPAM. Entrava em ruptura absoluta com tudo aquilo que era suposto ser um sketch humorístico. Passados tantos anos, a modernidade mantém-se.”

Daqui a 1600 anos a humanidade ainda achará graça à piada de Archelaus, o rei que calou o seu barbeiro. Daqui a 1600 anos, os sketches dos Monty Python ainda explicarão, com a sua violência iconoclasta, com o seu domínio perfeito da linguagem, com a sua capacidade de nos pôr a rir da nossa gloriosa, fascinante e trágica loucura, da nossa congénita pequenez, o que é isso de ser humano e interagir com outros humanos (até, do nada, sermos esmagados por um peso de dezasseis toneladas que nos acerta em cheio na cabeça).

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