Egipto: a anunciada restauração do poder militar

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1. Temos os olhos fixos em duas tragédias árabes: a Síria e o Iraque, unidos pela ameaça dos jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Também o Egipto, o maior país árabe, vive um período dramático mas em flagrante contraste com aqueles: é um Estado forte e de novo dominado pelos militares. É tempo de voltar a olhar para o Cairo.

A “revolução egípcia” de 2011, em lugar de criar uma espiral desenhou um círculo que agora parece fechar-se. No Egipto, “o futuro parece-se muito com o passado” — anota Steven A. Cook, historiador do regime egípcio.

Lembremos algumas datas: Mubarak foi deposto no dia 11 de Fevereiro de 2011; Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, foi eleito presidente no dia 30 de Junho de 2012; a 30 de Junho de 2013, Morsi foi “demitido” nas praças por milhões de manifestantes; no dia 3 de Julho, “obedecendo à vontade popular”, o general Abdel Fattah al-Sissi, comandante das Forças Armadas, destituiu Morsi; nas eleições de 26-27 de Maio de 2014, Sissi foi eleito presidente.

2. Khaled Daoud, porta-voz do liberal Moahmed ElBaradei, declara numa entrevista à Jeune Afrique: “Pensámos que, ao derrubar Mubarak, o mais duro estava feito e verificamos agora que este indivíduo era apenas parte de um sistema com décadas de inércia.” Esta confissão revela a grande ilusão dos que ignoraram a História.

A mobilização dos jovens egípcios, no dia 25 de Janeiro de 2011, começou por um efeito de contágio — a Tunísia. Entre as muitas diferenças entre Túnis e o Cairo destacava-se a relação entre poder e exército. Na Tunísia havia separação. “O regime egípcio é o inverso: a legitimidade reside no Exército desde a revolução nacionalista de 1952. O Exército é aparentemente coeso, tem privilégios e concebe-se como servidor do interesse nacional e não de um ditador. Em caso de perda do controlo da situação pelas forças de segurança, os militares não ficarão inertes. É o seu regime que está em jogo. Ignora-se, sim, o que o Estado-Maior pensa fazer com Mubarak”.

Dias depois, Mubarak era destituído por pressão da Praça Tahrir — mas através das Forças Armadas. Estas fizeram uma manobra de largo alcance. Sendo a coluna vertebral do Estado, evitaram ser atingidas pela deslegitimação do regime. Sacrificaram Mubarak não apenas para proteger interesses, incluindo o seu império económico, mas também as instituições de que se consideram garantes.

Se os liberais foram a vanguarda na Praça Tahrir, a única força que o exército tinha de ter em conta era a Irmandade Muçulmana. Alguns liberais tiveram em mente um compromisso. Nas eleições, a Irmandade poderia aceitar uma “autolimitação” do seu papel político, não concorrendo, por exemplo, às presidenciais. Tal permitiria uma transição lenta, conservando a hegemonia militar — na antiga fórmula turca de “o exército manda mas não governa” — e prevenindo as tentações da Irmandade ou os temores que ela iria suscitar.

Todos estes cenários foram varridos pela voragem dos acontecimentos. Ellis Goldberg, professor na Universidade do Cairo, advertia em 2011: “O exército egípcio é mais profissional e educado do que nos anos 1950 e muitos oficiais podem reconhecer os benefícios da democracia. Mais provável, no entanto, é um desfecho tipo ‘golpe em câmara lenta’ e o retorno de uma espécie do autoritarismo austero das décadas passadas.”

O exército permaneceu sempre árbitro da situação mesmo quando, após a eleição de Morsi, pareceu afastar-se da cena. Morsi destituiu o velho marechal Tantawi e entregou a chefia das Forças Armadas a Sissi, um militar “piedoso” cuja mulher usa o véu islâmico. O exército aproveitou para rejuvenescer os comandos. Como dizem os franceses: “Chassez le naturel il revient au galop”.

3. Os Irmãos cometeram demasiados erros. Polarizaram o país. Não perceberam que apenas poderiam resistir aos militares aliando-se aos liberais — como fez Erdogan na Turquia. Se os liberais não tinham uma base popular tinham influência e davam a cobertura política. A Irmandade também não compreendeu que a sua base popular não era maioritária. Tiveram 37,5% dos votos nas legislativas e 24,8 na primeira volta das presidenciais. Impuseram “a sua Constituição”, entraram em guerra com o Tribunal Constitucional e os juízes. Negligenciaram a economia. Foram os artífices da sua queda. E Sissi pôde levar a cabo um “golpe de estado popular”.

Houve entretanto o factor Síria. “A grande maioria dos egípcios, cansada de uma crise que não parava de recomeçar e inquieta pelo risco de ela poder degenerar em guerra civil, preferiu o exército aos Irmãos”, conclui o egiptólogo Jean-Noël Ferrié. O mesmo fizeram, na grande maioria, os intelectuais egípcios, que hoje servem de caução a Sissi.

O “regresso ao passado” é sempre uma ilusão de óptica. Houve uma “restauração” do poder militar, num grau sem paralelo com a era Mubarak. Agora, os militares “mandam mas também governam”, o que os expõe. Por outro lado, ao contrário do que muitos ocidentais pensam, a clivagem não é entre nacionalistas seculares e islamistas conservadores, como na era nasserista. O exército tem uma visão conservadora da sociedade e profundamente religiosa. Fez uma aliança com o partido salafista Nour. Relevantes também são as alianças regionais: o Qatar é aliado da Irmandade, os sauditas financiam Sissi e o Nour.

No espaço de um ano, a repressão da Irmandade saldou-se em 2500 mortos, 16.000 prisões, mais de mil condenações à morte, incluindo a do seu chefe, Mohamed Badie. Não é seguro que se sigam as execuções: é o teste que falta. A Irmandade, fundada em 1928, saberá sobreviver — mas fora do poder. “O exército devolveu aos Irmãos a sua auréola de mártires e opositores que é, no fundo, a única postura que lhes convém”, diz o islamólogo Olivier Roy.

4. O Estado egípcio, ao contrário da generalidade dos árabes, tem uma tradição milenar. Resistirá. “Os egípcios continuam extremamente ligados ao seu aparelho de Estado e ao exército, os únicos capazes de restabelecer a ordem posta em perigo, durante um ano, pelos Irmãos Muçulmanos”, sublinha Sarah ben Nefissa, estudiosa das transições na Tunísia e no Egipto.

Diferente poderá ser o destino de Sissi que — escreve Steven Cook — sonha ser o herdeiro de Nasser mas é um homem “medíocre”. A sua popularidade decorre de ter restabelecido a ordem. O poder está concentrado nas Forças Armadas. A Sissi caberia a função de “disciplinar a arena política”. O “novo regime”, dependente dos “petrodólares” do Golfo, arrisca-se a falhar na frente económica e a confrontar-se com as mesmas “perturbações” que levaram ao fim de Mubarak.     

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