É agora que a verdadeira partida começa

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Manifestantes celebram o fim da era Mubarak. Mas é agora que tudo começa Yannis Behrakis/Reuters

Caiu Mubarak. A sua demissão era simbólica e politicamente decisiva. Mas não é a aurora da democracia. É agora que a partida começa. Que vem a seguir? Passada a festa, o Egipto entra numa nova fase para decidir o modelo da transição, numa longa prova de força entre os vários actores. A história política recomeça a mover-se após uma longa hibernação.

O modo como os regimes caem pesa nas transições. Falo de regime - e não só do autocrata - porque os militares, perante a rigidez de Mubarak, foram forçados a romper o quadro constitucional e a transmitir o poder ao Conselho Supremo das Forças Armadas. Em segundo lugar, porque em vez de uma "liberalização" do sistema os militares são forçados a falar em democracia, ou seja, em novo regime. O que não sabemos é o que ele vai ser.

Mubarak caiu pela conjunção do movimento pró-democracia com o Exército, que tinha de evitar dois cenários catastróficos: fazer um massacre, arriscando a própria divisão, ou deixar "cair o poder na rua", numa situação de caos. O marechal Tantawi, ministro da Defesa, disse no fim de Janeiro a diplomatas ocidentais que o papel do Exército é "defender a nação e não o regime". Foi uma contrariedade, pois os militares preferiam uma reforma no quadro do regime.

Tudo começou com a pressão dos manifestantes. Houve um salto qualitativo nos últimos dias. Eles ultrapassaram o estatuto de vanguarda, pondo em movimento grupos sociais para lá das classes médias urbanas e modernas. A entrada em cena dos sindicatos e a perspectiva de greve geral foram, como na Tunísia, decisivas.

Ao longo de 18 dias, um movimento sem dirigentes e politicamente heteróclito ganhou determinação e confiança, não abandonando o objectivo unificador - "Fora Mubarak". Falhou a táctica do Governo: esperar pelo apodrecimento e pela divisão da Praça Tahrir.

São estes os dois actores que abrem o grande jogo da transição. Outros surgirão a seguir.

É importante notar que, apesar dos 300 mortos, o movimento nunca abandonou o carácter pacífico e os militares afastaram Mubarak sem violência, o que favorece a negociação política.

Autoritarismo militar

De facto, Mubarak foi derrubado na quinta-feira, quando os chefes militares apareceram na televisão a assumir a responsabilidade pelo processo de transição. O discurso de Mubarak ao fim da noite foi um patético equívoco.


As Forças Armadas intervieram pela primeira vez a 1 de Fevereiro, travando a repressão, prometendo liberdades e reforçando a sua legitimidade. Agora, ao despedir Mubarak, colocam-se directamente no centro da cena política.

O regime nacionalista e autoritário do Egipto confunde-se com as Forças Armadas. Os presidentes e principais dignitários sempre foram militares, mas o Exército não se intrometia na cena política, o que preservou o seu prestígio e fez esquecer o seu estatuto de "casta" privilegiada.

Dizem os especialistas que o Exército interiorizou duas coisas: o papel de garante da continuidade do Estado e uma cultura autoritária. E quase todos são pessimistas em relação a uma reconversão democrática dos militares, seja pelos privilégios económicos, seja pelo facto de terem agora assumido o monopólio do poder.

Ellis Goldberg, professor na Universidade do Cairo, advertia ontem na Foreign Affairs contra o risco de "mubarakismo sem Mubarak". Concluía: "O Exército egípcio é muito mais profissional e educado do que nos anos 1950 e muitos oficiais podem reconhecer os benefícios da democracia. Mais provável é, no entanto, um desfecho tipo golpe em câmara lenta e o retorno de uma espécie de autoritarismo austero das décadas passadas."

A inicial "transição gradual e organizada" apontaria provavelmente para uma "democracia tutelada", em que os militares, à imagem da Turquia kemalista, seriam o árbitro supremo das opções políticas. Este modelo, que não desagradaria aos americanos, tinha como argumento impedir que, através de eleições livres, a Irmandade Muçulmana impusesse um regime teocrático e antiocidental.

Tudo em aberto

A realidade está, no entanto, em rápida mutação e os "modelos" de que hoje se fala no Egipto são as democracias pluralistas da Turquia de Erdogan ou da Indonésia pós-Suharto - países muçulmanos mas não árabes.


Mais do que os modelos conta a dinâmica política. "As ideias de quão inóspitos são os países árabes para a democracia ou de quão o mundo árabe é incompatível com a modernidade foram estilhaçadas pela coragem e pela visão de tantos tunisinos e egípcios", escrevia ontem Nicholas Kristoff, correspondente do New York Times no Cairo. "É também impressionante que os egípcios tenham vencido a polícia do Estado sem ajuda do Ocidente ou sequer apoio moral."

Duradoura ou efémera, é patente a viragem de mentalidade em grandes espaços do mundo árabe, na sequência de mudanças demográficas e culturais - e também perante o calamitoso fiasco económico das autocracias nacionalistas ou conservadoras. "A nova geração parece ter-se libertado da chapa de chumbo que há décadas pesa sobre o seu país", anota o politólogo árabe Hasni Abidi.

O analista libanês Rami Khouri observa que o mais importante que se passa na Tunísia e no Egipto é a "exigência de uma reconfiguração do modo como o poder estatal é exercido e de como a cidadania é praticada. (...) Eles lançaram o primeiro processo significativo de autodeterminação da cidadania árabe, exigindo definir os próprios valores nacionais, o sistema de governação e as políticas - talvez o primeiro desde o nascimento do moderno sistema de Estado árabe."

A linguagem mudou, assinala o islamólogo Gilles Kepel. "Já não é possível fazer política no mundo árabe ou ter um discurso político sem ter em conta a fortíssima aspiração à democracia, uma aspiração à democracia indígena, vinda de Tunes e do Cairo."

A própria Irmandade Muçulmana começou a redefinir a sua estratégia num plano de Estado laico - mas em que a religião não seja apagada do espaço público. Pode ser o declínio do antigo paradigma do fundamentalismo.

No Egipto está tudo em aberto. Caído Mubarak, começam os assuntos sérios. A primeira etapa joga-se na rapidez de constituição de uma "sociedade política" capaz de impor as regras de jogo ao Estado - e aos militares.

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