As várias vozes de Anna Calvi

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Em "One Breath" a inglesa Anna Calvi vai do sussurro ao registo quase operático. Porto e Lisboa vão ouvi-la, ao vivo, na próxima semana

Quando lançou o primeiro álbum, em 2011, muita gente enalteceu Anna Calvi. Entre eles, Brian Eno e Nick Cave. Mas também existiu quem duvidasse. Agora, ao segundo álbum, One Breath, a cantora e guitarrista volta a afirmar-se com convicção. 

Aquando do lançamento inicial afirmava ter crescido a ouvir Edith Piaf, Jeff Buckley, Debussy ou música flamenca. Agora revela-nos ao telefone, a partir de Inglaterra, que andou a redescobrir Tom Waits. “Não é apenas a sua forma de cantar”, diz. “Interessa-me a sua música, a forma como utiliza, por exemplo, as percussões e as guitarras. Fá-lo de forma totalmente original.” 

Tal como já acontecia no disco de estreia, também agora existem influências sonoras de outras músicas que fogem ao espectro rock. Aliás, o mapa sonoro das canções expandiu-se. Algumas canções parecem conter várias canções, com mudanças de intensidade, de ritmos ou de ambientes. A música coral, a música clássica contemporânea ou a escola minimalista continuam a marcá-la. 

“Todos esses elementos acabam por estar contidos na minha música, é verdade, mas não acontece de forma consciente” afirma. “Ao ouvir Steve Reich, John Adams, Ligeti ou Rossini, não estou a pensar em formas de recriação. Limito-me a desfrutar. É música que sempre me acompanhou e integro-a com facilidade naquilo que sou e estou a fazer em determinado momento.”

No primeiro álbum foi buscar Rob Ellis, um velho cúmplice de PJ Harvey, para a co-produção, o que lhe valeu algumas comparações com a inglesa. Agora optou por trabalhar com John Congleton, que no passado recente produziu discos de St. Vincent, Bill Callahan ou Black Angels. “É alguém que se adapta sem dificuldades a diferentes sonoridades, conseguindo extrair o melhor daqueles com quem trabalha”, justifica. “Aquilo que fez com Bill Callahan é fantástico. E depois é muito apaixonado em estúdio, alguém que consegue ser contagiante e isso é precioso.”

Ao telefone, a voz de Anna é frágil, parece tímida. Em disco a sua voz é altiva e afirmativa. E no novo álbum é ainda mais elástica, passando do sussurro ao registo quase operático num ápice. Às tantas perguntamos-lhe se encara a interpretação de cada canção, onde persegue registos tão diversos, como se estivesse a interpretar uma personagem diferente em cada uma. 

“Não”, responde de imediato. “Não penso nisso, as coisas saem-me com alguma naturalidade. Trabalho-os, claro, experimento, mas não estou a actuar.” E, sem parar, continua: “Faz-me até alguma impressão quando utilizam a palavra ‘teatral’ para tentarem definir o que faço.” David Bowie é alguém que assumiu ao longo dos anos diversas máscaras e isso não faz dele menos autêntico, argumentamos. “Verdade, mas parece-me que nem sempre o público percebe isso e tento não ir por aí.”

Tentamos perceber até que ponto aquilo que dizem dela a perturba, para mais sabendo-se que está a lançar o segundo álbum, envolto em grande expectativa. “Não penso no público quando estou a criar. Quando estou a criar limito-me a tentar cumprir o melhor que sei com as minhas ideias. É esse o objectivo. Não acredito em tentar corresponder às expectativas do público. Como é isso possível? Os gostos das pessoas estão sempre a mudar. Depois de lançar o disco, sim, oiço o que as pessoas têm para dizer e é claro que prefiro que digam bem.”

Depois da agitação

O novo álbum foi composto num período de grande turbulência emocional, pouco depois de um familiar muito próximo — cujo grau de parentesco não especifica — ter morrido. No anterior registo as cambiantes mais excessivas dos afectos já estavam presentes, mas eram mais focadas na paixão. 

Agora parece ter sido o desespero da perda que a marcou. “Quando se tenta ser honesta no processo de escrita, como acontece comigo, é natural que algumas coisas autobiográficas venham ao de cima, mas não diria que este é um disco confessional ou qualquer coisa assim”, esclarece. “Olho para ele como o disco de alguém em transição, depois da agitação. É uma obra de reconstrução, de esperança e não de morte.” 

Numa entrevista recente dizia que, nesse período conflituoso, fazer e ouvir música veio a revelar-se importante. Não no sentido da catarse, mas do apaziguamento. “É um pouco romântico mas agrada-me essa ideia das canções terem esse efeito de nos conectarem” afirma. “Creio que é isso: às vezes as canções são interlocutoras das nossas emoções. Ouvir alguém expressar qualquer coisa que também estamos a sentir é reconfortante.” 

Em palco é o tipo de personalidade que se transforma por completo. A 16 de Dezembro, na Casa da Música, no Porto e a 17 na Aula Magna, em Lisboa, regressará a Portugal para concertos. Nas anteriores deslocações não desiludiu, impondo a sua presença altiva e magnetizante, ao serviço de canções rock sumptuosas. 

Quem priva com ela de perto diz que fica irreconhecível. Ela ri-se: “Sim, dizem que projecto agressividade em palco, o que é estranho de ouvir. Sou a pessoa mais tranquila do mundo, precisamente porque lido bem com a minha agressividade.” 

Os pais são psicoterapeutas, praticantes de hipnoterapia, e perguntamos-lhe se, esse facto, não terá tido impacto na forma como lida com as suas emoções. “Creio que sim. Ensinaram-me principalmente a olhar para as coisas de diversos ângulos, a não ter medo de aprofundar os pensamentos, a ler a realidade a partir de várias camadas. Mas na música sou extremamente emocional.”

Na música encontra-se naquele patamar onde é possível ter visibilidade sem deixar de afirmar a sua identidade e, até, em algumas canções, testar novas aproximações sonoras. “Todos os grandes músicos que admiro, de Tom Waits a Bowie ou Maria Callas, atravessam essa linha onde é possível ser-se popular e ao mesmo tempo não prescindir de ensaiar coisas novas, porque existe sempre quem tenha vontade de ouvir”, reflecte. 

Esse balanço instável entre ser-se popular sem deixar de experimentar é difícil. “Mas alcançá-lo é o objectivo”, conclui.

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