Ucrânia vacila entre ultimatos no Leste e a ameaça da Rússia

Ocupações no Leste do país por milícias pró-russas têm deixado o Governo de mãos atadas. Pró-russos não acatam ultimatos de Kiev e Moscovo já alertou contra uma operação em larga escala dos militares ucranianos.

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GENYA SAVILOV/AFP Soldados armados à porta do edificio do governo na cidade de Slaviansk

Enquanto chegava ao fim mais um ultimato imposto pelo Governo interino de Kiev para que as milícias pró-russas desocupassem edifícios governamentais no Leste do país, as barricadas continuavam a ser reforçadas com pneus e sacos de areia e dois novos símbolos caíam na cidade de Horlivka, muito perto da fronteira com a Rússia.

Na manhã desta segunda-feira, a situação no terreno mostrava bem o colete-de-forças com que Moscovo paralisou Kiev: se o Presidente Oleksander Turchinov cumprir a ameaça de expulsar as milícias pró-russas pela força, Vladimir Putin poderá encontrar aí a justificação para fazer avançar as suas tropas e pôr fim ao que resta da unidade territorial ucraniana; se nada for feito, a unidade territorial estará definitivamente comprometida.

Para tentar evitar qualquer um destes cenários, o Presidente interino da Ucrânia acenou com a possibilidade da realização de um referendo sobre o futuro das fronteiras do país, uma concessão que, ainda assim, está longe de agradar aos separatistas pró-russos.

A ideia de Oleksander Turchinov e do governo provisório liderado por Arseni Iatseniuk é perguntar a toda a população da Ucrânia se prefere continuar a viver sob a autoridade de Kiev ou se defende uma maior autonomia regional – uma proposta que deixa em aberto a possibilidade de um Estado federal, como defende a Rússia.

Mas as milícias pró-russas – que a Ucrânia, os Estados Unidos e a União Europeia dizem ser cidadãos instigados e manipulados por agentes a mando de Moscovo – exigem um referendo muito diferente, rejeitando qualquer proposta em que sejam ouvidos os habitantes do Oeste do país, maioritariamente pró-União Europeia.

Para aprofundar a divisão entre as duas propostas, as autoridades de Kiev admitem consultar a população a 25 de Maio, no mesmo dia das eleições presidenciais. Os porta-vozes das milícias pró-russas querem um referendo já – esta é mesmo uma das suas exigências para aceitarem desocupar edifícios governamentais em dez cidades do Leste do país.

O ultimato lançado por Kiev chegou ao fim às 9h desta segunda-feira (7h em Portugal continental), e nada no terreno aponta para que ameaça do Governo venha a ser cumprida. Para além do reforço das barricadas, os separatistas voltaram a apelar à intervenção de Vladimir Putin: “Ajude-nos o máximo que puder”, apelou um dos líderes rebeldes na cidade de Slaviansk, onde as autoridades ucranianas tentaram lançar no domingo uma “operação anti-terrorista”, que se saldou em dois mortos, um número indeterminado de feridos e no aparente reforço da resistência pró-russa.

A somar-se à complexidade da situação, com pelo menos 40.000 soldados russos colocados ao longo da fronteira, segundo as estimativas da NATO, há sinais de falta de união entre as estruturas políticas, militares e policiais da Ucrânia. Nesta segunda-feira – no mesmo dia em que as forças ucranianas deviam estar prontas a avançar contra os separatistas pró-russos –, o Presidente Turchinov demitiu o responsável pelas operações anti-terroristas, Vitali Tsihanok, criticado pela forma como tem gerido a crise no Leste.

No domingo à noite, numa reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o embaixador russo, Vitali Churkin, acusou o governo interino de Kiev – ou os “conspiradores de Maidan”, segundo as suas palavras, em referência às manifestações que levaram à deposição do Presidente Viktor Ianukovich, em Fevereiro – de “atacarem o seu próprio povo”.

Em nome da Rússia, Vitali Churkin disse ainda que o “autoproclamado governo em Kiev” deve “dar início a um diálogo genuíno”.

Apelo à ONU

Numa outra medida para tentar garantir mais apoio contra a estratégia de Moscovo para além das ameaças de reforço das sanções, o Presidente ucraniano disse ao secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, estar disposto a receber no país um grupo de soldados de manutenção da paz para, em conjunto com as forças ucranianas, realizarem uma “operação antiterrorista”.

“Não nos opomos, e até recebemos com agrado, a ideia da realização de operações antiterroristas conjuntas no Leste [da Ucrânia]. Os especialistas e observadores poderão testemunhar a legalidade das nossas acções”, disse Turchinov, num comunicado publicado no site da presidência ucraniana.

O secretário-geral da ONU não se comprometeu com nada (e qualquer proposta de envio de uma força da ONU seria muito provavelmente vetada pela Rússia), mas deixou claro o seu apoio a Kiev: “Quero expressar-lhe o meu apoio total a si, pessoalmente, e ao povo da Ucrânia. Pode contar com a ONU como um parceiro. Farei tudo o que puder para que a situação se resolva de forma pacífica o mais depressa possível”, disse Ban Ki-moon.

Em linha com o que tem sido afirmado pelos governos dos EUA, do Reino Unido e da Alemanha, o Presidente ucraniano acusou Moscovo de envolvimento directo nas manifestações e ocupações.

“A Federação Russa envia unidades especiais para o Leste do nosso país, que lideram a ocupação de edifícios administrativos e ameaçam a vida de centenas de milhares de cidadãos”, disse Turchinov, referindo-se a uma estratégia decalcada da que levou à anexação da Crimeia, mas com uma diferença – desta vez, afirma o Presidente ucraniano, “a maioria do povo não quer apoiar os separatistas”.

“Choque estratégico”

Esta ideia é partilhada por Keir Giles, especialista em assuntos sobre o poder militar da Rússia e director do Centro de Investigação de Estudos sobre Conflitos, um think tank com sede em Shrivenham, Inglaterra. Se na Crimeia a vontade da maioria da população estendeu uma passadeira vermelha a Moscovo, no Leste e no Sudeste da Ucrânia a situação é muito mais complexa, argumenta Giles, ouvido pela BBC.

Questionado sobre se os acontecimentos dos últimos dias – e uma possível resposta em larga escala das autoridades ucranianas – indicam a iminência de uma intervenção militar russa, o analista qualificou esse cenário como “perfeitamente plausível”. “Iria ao encontro não só da narrativa de Moscovo a longo prazo sobre a segurança dos direitos e das vidas dos cidadãos russos [na Ucrânia], mas também ao imperativo doutrinário de garantir a segurança e a estabilidade das fronteiras da Rússia”, defende Keir Giles.

O analista Roger McDermott, da The Jamestown Foundation, com sede em Washington, concordam também que a Ucrânia foi colocada num colete-de forças, e que a NATO e os países ocidentais têm opções limitadas.

“Se o Exército ucraniano e as forças de segurança oferecerem mais resistência do que a que Moscovo espera, isto pode tornar-se longo, arrastado e sujo”, diz McDermott. “Mas se as forças de Kiev se desfizerem, ou se levarem muito tempo a responder, Moscovo terá um enorme trunfo para levar para a mesa de negociações e garantir os seus objectivos: ou o Ocidente reconhece um Estado ucraniano desmembrado, ou promove a ideia de um compromisso que inclua uma nova Constituição e a emergência de um Estado federal ucraniano mais fraco e mais dócil perante o Kremlin.”

Para este analista, Washington e Bruxelas têm sido lentas a responder porque receberam um “choque estratégico” e insistem em não perceber o que está em jogo: “O Kremlin está a apostar forte porque acredita que pode ganhar.”

A crise na Ucrânia tem revelado “fraquezas nas avaliações sobre a Rússia e sobre a potencial ameaça que ela pode representar para a Europa Ocidental”, defende ainda Roger McDermott, que termina com uma crítica e um conselho: “Nem os analistas nem os governos ocidentais conseguem explicar como se pode evitar que a Rússia alcance os seus objectivos estratégicos na Ucrânia. Em vez de pensamento racional, vemos apenas exasperação e embaraço.”

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