EUA e Rússia saem da última reunião antes do referendo na Crimeia "sem uma visão comum"

John Kerry defendeu que os "interesses legítimos" da Rússia podem ser assegurados sem questionar soberania da Ucrânia. Conselho de Segurança vai reunir-se de urgência sábado, mas Moscovo deve vetar qualquer resolução

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Sergei Lavrov e John Kerry estiveram reunidos durante seis horas Brendan Smialowski/Reuters

Poucos esperariam que o conflito na Crimeia ficasse resolvido numa reunião de seis horas entre os responsáveis pela política externa dos Estados Unidos e da Rússia, que decorreu nesta sexta-feira em Londres. Nas conferências de imprensa que se seguiram ao encontro, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, esforçou-se por transmitir a ideia de que as portas da solução diplomática ainda estão abertas, mas o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, limitou-se a constatar que "não existe uma visão comum" sobre a questão.

Kerry surgiu no salão da residência oficial do embaixador norte-americano em Londres para fazer um resumo das conversações de última hora com o seu homólogo russo, mas o que tinha para dizer não acrescentou muito ao que já se sabia: o governo pró-russo da Crimeia não vai desistir do referendo de domingo; a Rússia vai respeitar o resultado dessa consulta; e os Estados Unidos e a União Europeia vão responder a ambas as decisões com um novo conjunto de sanções.

Ficou claro durante a reunião que Vladimir Putin não vai tomar qualquer decisão sobre a Crimeia antes do referendo, mas esta revelação foi, ao mesmo tempo, condenada e aproveitada pelo secretário de Estado norte-americano para lançar uma escada ao Presidente russo, com uma estratégia que os EUA começaram a desenvolver nos últimos dias.

Apesar do ar cansado, no final de uma maratona negocial "franca e construtiva" – mas que acabou por não produzir resultados práticos, se a intenção era convencer a Rússia a desistir do referendo –, John Kerry passou uma parte importante da conferência de imprensa a frisar que ninguém põe em causa "os interesses legítimos da Rússia na Crimeia", seja por questões históricas, culturais, de defesa dos seus portos, ou de protecção da população russófona, e que tudo isso pode ser preservado sem que a região seja separada da Ucrânia.

"Esperamos que o Presidente Putin reconheça que nada disto representa uma ameaça contra a Rússia, ou uma questão pessoal, mas sim o respeito pelas relações internacionais estabelecidas desde o fim da II Guerra Mundial", disse John Kerry.


Apesar de reafirmar que nem os EUA, nem a União Europeia, nem o governo interino da Ucrânia recuam um milímetro na condenação do referendo na Crimeia, Kerry parece ter empurrado a "linha vermelha" para depois da votação, sinalizando que os líderes ocidentais aguardam pela decisão de Vladimir Putin para avaliarem se será necessário "ajustar as respostas" – outra forma de dizer a Putin que serão aplicadas sanções mais duras se o Presidente russo tomar "a decisão errada" de anexar a Crimeia, mesmo que, como é expectável, a maioria dos eleitores da região ucraniana escolha esse caminho.

Os Estados Unidos farão ainda uma última tentativa no sábado, tentado aprovar uma resolução para condenar o referendo de domingo na Crimeia, adianta a AFP. Mas não restam dúvidas de que a Rússia imporá o seu veto, como membro permanente daquele órgão, impedindo a aprovação.

Aceitar o inaceitável

Restará ao Ocidente encontrar formas de lidar com a nova realidade fronteiriça forçada pela Rússia.. "Respeitar a votação [do referendo] dá a Putin muitas formas de lidar com essa votação", disse o secretário de Estado norte-americano, numa tentativa de separar o resultado da consulta popular de uma inevitável integração da Crimeia na Federação Russa. A porta para a anexação da Crimeia – sublinhou Kerry – só ficará escancarada se o Parlamento russo ratificar o referendo.

Questionado sobre se os EUA e a União Europeia estão decididos a aplicar novas sanções no domingo, em resposta à realização de um referendo que consideram "ilegítimo" e "ilegal" – e se essas sanções poderão ter alguma influência na decisão de Vladimir Putin –, John Kerry lembrou que as medidas tomadas na última semana já afectaram a bolsa de Moscovo e já se reflectiram no valor da moeda russa, concluindo que "mais sanções irão ter ainda mais impacto".

Num dia marcado por episódios de violência em Donetsk – uma cidade de maioria russófona no Leste da Ucrânia – e pelo reforço dos exercícios militares das forças armadas russas ao longo da fronteira entre os dois países, o ministro Sergei Lavrov reforçou a acusação de que o governo interino de Kiev não está a conseguir garantir a segurança, o que deixou no ar a hipótese de a Rússia intervir militarmente noutras zonas da Ucrânia.

Sobre este assunto, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo foi taxativo, nas declarações que se seguiram à reunião com John Kerry: "A Federação Russa não tem e não pode ter nenhum plano para invadir as regiões do sudeste da Ucrânia."

Um e outro lado têm exercitado o músculo militar nos últimos dias, com os EUA a enviarem para a região 12 aviões F-16, a pedido da Polónia, e a Rússia a espalhar milhares de soldados ao longo da fronteira com a Ucrânia e a sobrevoar o Mediterrâneo com os seus caças.

A julgar pelas declarações dos dois responsáveis, John Kerry parece ter cedido um pouco mais na retórica inflamada das últimas semanas. Apesar de se manter firme nos avisos à Rússia, o discurso desta sexta-feira foi mais cuidadoso, com algumas correcções nas expressões utilizadas – as sanções a aplicar no domingo ou na segunda-feira por causa da realização do referendo na Crimeia foram algumas vezes transformadas em "respostas"; e foi notória a insistência no reconhecimento dos "interesses legítimos da Rússia", o que deixou o correspondente da BBC em Washington, Paul Adams, a questionar-se sobre se a Casa Branca não estará a admitir que "tem desconsiderado um pouco de mais os argumentos da Rússia".

O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, por seu lado, não se desviou do discurso que tem saído do Kremlin desde o início do conflito, e o único sinal de esperança numa solução política foi a garantia de que continuará a conversar com o seu homólogo norte-americano nos próximos dias. Quanto ao eventual receio das sanções dos EUA e da União Europeia, a Rússia continua a apostar no alerta para um possível efeito bumerangue, descrevendo-as como "um instrumento contraproducente".

A reunião "franca e construtiva", que ocupou John Kerry e Sergei Lavrov durante seis horas em Londres, foi resumida ao final da tarde num tweet do secretário de Estado norte-americano, que traduziu bem a falta de resultados práticos: "Deixei mais uma vez claro ao ministro Lavrov que haverá consequências se a Rússia não mudar de rumo. Vamos manter-nos em contacto nos próximos dias."

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