Miró, cada vez mais surreal!

De repente, uma boa parte da população portuguesa considera um crime de lesa-pátria vender 85 obras de Joan Miró. Mas ficámos ricos de repente, ou algo me escapou?...

Joan Miró (1893-1983) é um nome internacionalmente reconhecido no movimento artístico do surrealismo, um estilo que nasceu em França, em 1924, que terá como artista mais destacado Dalí, mas conta com outros reconhecidos, para além de Miró, como Man Ray, André Masson, Pierre Roy e René Magritte.

Em Dezembro do ano passado veio a público que a leiloeira londrina Christie's teria sido contratada para promover a venda em leilão de 85 obras de Joan Miró, com um preço-base de cerca de 36 milhões de euros. Pareceu-me na altura uma não-notícia, já que em Julho de 2012 a então secretária de Estado do Tesouro tinha comunicado à comissão parlamentar de inquérito ao BPN que o Governo iria consultar as principais leiloeiras internacionais para venderem estas obras. O único facto novo era o valor-base de licitação, muito próximo do valor contabilístico destes activos nas contas do BPN, mas um pouco longe da última avaliação, promovida ainda pelo banco, que apontava para um valor próximo dos 80 milhões de euros.
 
Admirou-me mesma a catadupa de comentários, opiniões e até petições públicas que esta decisão tem gerado, em particular e no mau sentido a providência cautelar interposta pelo Ministério Público, na sequência de um pedido do PS. Tudo isto como se alguém estivesse a vender ao desbarato estas obras que por um acaso infeliz vieram ter às mãos do Estado como herança da nacionalização do BPN. Por acaso este valor não faz parte de um gigantesco financiamento que a CGD foi “obrigada” a fazer para cobrir imparidades e outras maldades geradas no processo BPN? Ai, mas 36 milhões é só uma pequena parcela... Quê? E daí, são trocos? Para quem? Mas com que razoabilidade económica, num país falido como o nosso, se discute a grande perda cultural com esta venda?

Ouvimos argumentos para todos os gostos para que se interrompa este desígnio da venda destas obras. Alguns, acho fantásticos. A obsessão com o critério de transparência obriga a que a venda destas obras seja feita em bloco, o que provocará uma depreciação no valor a nível mundial, que é assim um pouco como quem diz: “A Christie's não percebe nada deste assunto e devia era vender um quadro de vez em quando”. Eu acrescentaria que a Christie’s deve estar distraída, aquela boa gente que faz leilões de milhões e milhões de euros há 400 anos não sabe que em Portugal há quem perceba muito mais daquilo que eles e que lhes poderiam explicar como estas coisas são vendidas. Haja paciência!

Portugal poderia “aproveitar” esta oportunidade e ficar com estas obras de Miró, que expunha em qualquer sítio e era ver os turistas a fazerem fila para virem à nossa terra ver as ditas e deixar aqui uma montanha de euros. Está tudo tolo? Vamos por partes e assumindo que esta venda rendia apenas a base de licitação, isto é, cerca de uns “míseros” 36 milhões de euros. Comecemos pelas Finanças, já lá vamos à Cultura. Alguém acha mesmo que devemos alocar 36 milhões de euros do nosso malfadado orçamento nalgum tipo de exposição destas obras que viesse a gerar um retorno positivo? É difícil perceber que temos tantos destinos mais necessários e prementes para uma quantia deste género? Digo-vos com franqueza: se eu fosse banqueiro e me viessem pedir 36 milhões de euros para comprarem uma colecção de 85 obras de Miró, eu desmontava-me a rir. Claro que alguém com muito dinheiro pode achar o negócio fantástico, e até admito que o seja, e que passados uns anos estas obras venham a valer muito mais, mas e daí? Quer isto dizer que, por existir espectativa de valorização, se deve fazer um negócio destes com dinheiro emprestado? Bom, o BPN fez, como outros e deu no que deu!

Passemos agora à Cultura e imaginando-me titular desse pelouro. Então devo considerar que comprar esta colecção por 36 milhões (sim porque é disto que se trata, a colecção está nas mãos do Estado, mas tem que ser paga) deve ter prioridade em relação a outras solicitações da Cultura? Humm... E no teatro, não? E no cinema, não? E na música, não? E em tantos artistas nacionais, seja da pintura ou de outras áreas, também não? Não teremos nos nossos museus conjuntos com o mesmo tipo de interesse cultural que nos custa tanto manter? Não nos fartamos de queixar que não apoiamos suficientemente a cultura? E agora sobram 36 milhões para isto? E devo eu demitir-me por isto? Alguém me faz um desenho?

Portugal passava a ser ainda mais destino turístico porque tínhamos esta belíssima (e aqui não há ironia) colecção para mostrar. Claro que há alguma razão nisto, mas a questão não é essa. Paga-se por si? Ou é como Foz Côa, Colecção Berardo e tantos outros exemplos? Não é que a visão tenha que ser apenas economicista, mas então a questão é outra: temos dinheiro? É que se for com dinheiro emprestado não é mau, é um disparate completo. E veja-se a concorrência quando se pensa na eventual bondade deste investimento. A Fundação Joan Miró, em Barcelona, tem 14.000 peças de Miró. É com isso que queremos competir? Portugal recuperaria o investimento com as receitas de turismo adicionais que passaria a ter? Já agora, estas obras estão nas mãos do Estado desde 2008. Não houve oportunidade de as mostrar até agora? Não deve ter havido tempo. Que pena terem sido só cinco anos...

A história do BPN é conhecida: nacionalizado em 2008 pelas piores razões, supostamente no maior interesse dos depositantes, que eu acredito que pudesse ser acautelado com um custo muito menor, foi depois vendido ao BIC, entidade liderada em Portugal por Mira Amaral, em Julho de 2011, por um preço anunciado de 40 milhões de euros. Claro que não foi vendido por inteiro: retiraram-se umas partes que o BIC não quis (nem ninguém quereria) e prometeu-se compensar por outras imparidades que se viessem a demonstrar, o que veio a acontecer. Trata-se, em resumo, de algo que se entendeu ter de nacionalizar para depois pagar “bem” a quem ficasse com a parte melhor. Não sabemos ainda quanto nos custou esta história (como disse um ex-secretário de Estado, “não se pode tirar uma fotografia a um filme a decorrer”). À data da nacionalização, pensou-se que eram 2 mil milhões – pensou-se, não, alguém disse, para acalmar os ânimos – porque 600 milhões injectados para repor os rácios de capital, outro tanto e pelas mesmas razões quando se preparava o embrulho para vender, mais 1,5 mil milhões que a CGD assumiu em garantias, 3,9 mil milhões em activos problemáticos, como hipotecas e crédito malparado, 1,8 mil milhões em perdas com activos que o Estado já assumiu, duas linhas de crédito de 700 milhões para assegurar riscos como os da corrida aos depósitos, enfim, muito. O valor final, quanto isto nos custou, saberemos, espero eu, daqui a uns 10 anos. E de toda esta história só nos resta aprender para não a repetir qualquer dia. É passado e as facturas vão chegando e claro que as vamos pagando. E no meio desta desgraça aparecem 85 obras de Miró, e o que nos vem à cabeça? No meio de tantos milhões, bom é ficarmos com isto que é giro!

Aproveito alguns que me lêem para dizer que gostava de um desportivo daqueles sem capota, pode ser azul-escuro, não tem de ser um Ferrari, pode ser assim um Porsche ou parecido, qualquer coisa de uns 150 mil euros ou 200 vá, com uns extras, pronto. Oferecido pelos contribuintes. Qual é o mal? Há assim diferença relevante na dívida do país? Não pagamos a alguém para ficar com a parte boa do BPN muito mais que isso (por muito barato que isso tenha sido)? Não comprámos 85 Mirós por 36 milhões, ou 80, ou o que seja? Mas ser uma pequena parcela de um mal maior é algum argumento para se tratar com displicência 36 milhões de euros? Estaremos perante outro milagre económico, agora invocado pelos partidos mais à esquerda? Haja bom senso e vendam lá isso rápido. Surrealismo é um movimento artístico, não é coisa para se usar na gestão do que é público!

 

 

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