O simbolismo da Justiça e a pedofilia

Antoine Garapon dirige o Instituto de Altos Estudos de Justiça em França e diz que, ante um julgamento, o público se fixa mais no espectáculo do que nas discussões jurídicas. Dá a razão: antes de ser “uma faculdade moral, julgar é um acontecimento”. Um ritual, digo eu.

Sou pelo ritualismo da e na Justiça. Ritual da autoridade dos valores, dos princípios, da solução aceite dos conflitos. Do respeito intransigente pelo Direito. Que afirme o valor filosófico, político e democrático da palavra da Justiça. Não vacuidade de circunstância, espectáculo televisivo de completa ausência do cidadão. Imediatismo inútil e supérfluo.

Dificilmente se alcança a tonalidade religiosa que se emprestou ao acto da passada semana. Da abertura do ano judicial ficou a afirmação pública do presidente do Supremo Tribunal de Justiça sobre o estado florescente desta. Uma promessa político-legislativa da ministra da Justiça.

Há poucos anos (PÚBLICO, 20/11/2003), grandes nomes da Ciência Jurídica reconhecidos em Portugal e no estrangeiro retrataram na Assembleia da República um quadro triste da Justiça. Está à vista de toda a gente que tudo se mantém, com muito pequenas alterações positivas. O “recrudescer do autoritarismo dos tribunais e dos juízes”. A “irresponsabilidade dos magistrados”. Do Ministério Público se disse não respeitar o seu próprio Estatuto. Actuar sem atender à imparcialidade e objectividade.

Questões relevantes que ficaram em branco. Devem ser tratadas. O presidente esqueceu-as. A Justiça não existe para gáudio dos seus agentes. Antes para o cidadão e empresas.

A ministra da Justiça fez a afirmação mais polémica de duas horas de discursos. Vai criar um “banco de dados de pedófilos”. Admite-se que crie. A governante afirma que o seu Governo é o único que toma duas medidas estruturais para a Justiça por semana.

É tema que merece muita reflexão. E humanismo. Pela sua extrema sensibilidade. Verdade é que tendemos numa hora para a crucificação do criminoso, na seguinte lamentamos as situações degradantes das cadeias.

Felícia Cabrita faz jornalismo de investigação. Em 2002, fez estremecer o país com uma investigação que originou o processo mais dramático e traumatizante dos últimos tempos: a Casa Pia. Carlos Cruz foi apresentador de televisão. O “Senhor Televisão”! Arguido nesse processo, foi condenado a vários anos de prisão por crimes de abuso sexual de menores.

No ano anterior àquele processo, o PÚBLICO na sua edição de 7/4/2001 dizia em primeira página: “Comissão do Euro não sabia das dívidas fiscais de Carlos Cruz”. Dívidas de 300 a 400 mil contos. Foi escolhido, disse a Comissão do Euro, como “cara da campanha" da moeda europeia. "Pelo seu profissionalismo, pelo cidadão e pelo apreço..”. A Comissão reconheceu-o.

A tese da ministra não foi muito além do anúncio. O que persegue, o que quer, para que o quer. Estratégia. Tacticismo político-eleitoral.

Os órgãos judiciários e policiais têm ao seu dispor o certificado do registo criminal dos condenados. Sem “banco de dados”.

Carlos Cruz e outros têm de suportar a vida inteira o dedo acusador e em riste da sociedade e vizinhos? Ignoro qualquer princípio filosófico ou jurídico-criminal que o determine. Sei (é pouco) que o cumprimento da pena presume a ressocialização de quem a cumpriu. Isto é o que está na lei.

É à ministra a quem compete definir a política da Justiça. Enquanto ministra desta. Também a política está sujeita a valores, princípios filosóficos e éticos. Se quiser ser democrática.

Procurador-geral adjunto

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