Moçambique vota a “torcer por final feliz” da crise político-militar que ameaça a paz

Mais de três milhões de eleitores escolhem novos autarcas em Moçambique, num ambiente dominado pelo medo de regresso da guerra generalizada. A importância das eleições transcende o âmbito local. A Renamo boicota a consulta eleitoral. Os resultados podem influenciar o diálogo pela paz e ter consequências no xadrez político.

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Preparativos eleitorais na escola onde vai votar o Presidente Guebuza Nelson Garrido
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Preparativos eleitorais numa escola do bairro periférico da Matola Nelson Garrido
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Preparativos eleitorais numa escola do bairro periférico da Matola Nelson Garrido
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A campanha nas ruas de Maputo Nelson Garrido

Nos últimos dias, Inácio esteve hesitante entre ficar em casa ou ir votar. É um dos muitos moçambicanos com medo do regresso a uma guerra que conheceu bem de perto. A sua hesitação, que diz ser também ser a de muitos outros, tem sido sobre a forma de manifestar o descontentamento com o rumo do país: abster-se ou votar pela “descontinuidade”.

A escolha que os eleitores são chamados a fazer esta quarta-feira não é apenas entre quem votar. Face ao boicote às eleições anunciado pela Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), antigo movimento rebelde e principal partido da oposição, ir ou não ir às urnas é desde logo uma escolha política – o que não é fácil para um funcionário público, como Inácio.

Nas conversas com moçambicanos percebe-se “apreensão” quer com o que possa acontecer nas urnas, quer quando forem anunciados os resultados – dados concretos só devem começar a ser conhecidos quinta-feira –, quer sobre a evolução da tensão político-militar em que o país vive. É como se houvesse uma angústia do dia seguinte. “Há um medo de facto”, diz, numa alusão aos episódios de violência das últimas semanas no centro e Norte, protagonizados por forças governamentais e membros da antiga guerrilheira. Terça-feira à tarde chegaram a Maputo informações sobre um novo ataque a veículos protegidos por escolta militar, na província de Sofala, que teria causado três feridos.

Como outros moçambicanos ouvidos nos últimos dias em Maputo, Inácio pensa que “não vai mudar nada” na vida concreta das pessoas, que as autárquicas não resolverão os problemas de quem tem de viver com um salário mínimo que ronda dos 2500 meticais (menos de 70 euros). Mas acredita que a votação pode dar “um pulsar” do que serão as eleições gerais de 2014. Foi por isso que decidiu sair de casa. Sendo embora locais, o modo como decorram eleições e os resultados não deixarão de ter consequências para a política moçambicana, para os principais partidos e para o futuro de um país que vive o medo do regresso à guerra vivida entre 1976 e 1992.

O Secretariado Técnico de Apoio ao Processo Eleitoral informou que estão criadas as condições para que as eleições decorram em segurança, mesmo nas zonas onde têm ocorrido confrontações militares. Mas a declaração não afasta preocupações, sobretudo depois dos incidentes envolvendo a polícia que, no sábado, causaram dezenas de feridos na Beira, num comício do MDM (Movimento Democrático de Moçambique), único partido que concorre com a Frelimo em todas as autarquias. “O meu maior temor é que haja uma desorganização intencional do processo através da FIR [Força de Intervenção Rápida, corpo especial de polícia]”, disse ao PÚBLICO Salomão Moyana, director do semanário Magazine.

A Frelimo, que só não tem a presidência de dois dos actuais 43 municípios – passam agora a ser 53 –, não acredita noutra coisa que não numa vitória, apesar de sinais de descontentamento com as políticas governamentais, como as inéditas manifestações de rua que há poucas semanas ocorreram em algumas das principais cidades. Citado pelo jornal oficioso Notícias, o analista Eugénio Brás considera que “a diferença entre a Frelimo e os outros concorrentes é que ela já vem realizando obra”. David Simango, de novo candidato em Maputo, com quem o PÚBLICO falou, é exemplo do optimismo do partido governamental. Falando sobre a sua cidade disse que “não há motivo para ter dúvidas” sobre uma vitória.

Mesmo que os resultados confirmem esse triunfo não é indiferente para o futuro do país e do antigo partido único a dimensão da vitória, nem o modo como o escrutínio decorra. Se o processo oferecer dúvidas, a oposição não hesitará em falar de fraude. O pós-eleições dependerá em muito da forma como as pessoas entenderem os resultados. “Se houver percepção de que houve máfia, pode haver problemas. Se o MDM perder na Beira e as pessoas acharem que o seu voto foi roubado, pode haver problemas”, considera Fernando Gonçalves, editor do semanário Savana.

 Ainda que a eleição decorra sem sobressaltos, “um resultado não muito favorável à Frelimo aumentará a pressão para que seja mais comodativa [nas negociações de paz], um muito bom resultado talvez possa radicalizar a ala próxima do Presidente da República, levá-la a ser mais radical no processo de negociação de paz”, afirma o mesmo jornalista.

O nível de abstenção, normalmente alta, não deixará de ter leituras políticas. Se desta vez for inferior aos 53,64% das autárquicas de 2008, e se a esse elemento forem associados bons resultados da Frelimo – ou pelo menos não sofrer grandes perdas no conjunto do país –, o partido no poder desde a independência não deixará de cantar vitória e poderá dizer que os eleitores não seguiram o apelo da Renamo ao boicote. Se a abstenção aumentar, os antigos rebeldes não deixarão de alegar que a sua mensagem foi ouvida.

Os resultados da Frelimo condicionam também o processo de sucessão do Presidente Armando Guebuza, que termina o mandato no próximo ano, e podem esbater ou acentuar divergências internas. “Neste momento é quase crime emitir uma opinião de dissidência em relação às posições oficiais”, afirma Fernando Gonçalves, segundo o qual a vitória da Frelimo nas eleições gerais de 2009, quando conseguiu quase 75%, tornou o partido “mais intolerante” à crítica. O último congresso, em Setembro do ano passado, foi o “culminar de um processo de alienação de pessoas com pensamento independente”, caso da antiga primeira-ministra Luísa Diogo. Salomão Moyana considera que a Frelimo “tem-se vindo a enganar” e pensa que “as eleições podem ajudá-la a perceber quanto vale e a reduzir o nível de arrogância e a tomar em conta as propostas dos outros”.

Um bom resultado do partido governamental “fortalece a posição do actual Presidente e permite-lhe com maior firmeza ditar o processo de sucessão e calar os que lhe são críticos”, pensa Gonçalves. Ao contrário, no cenário de a Frelimo ter importantes perdas eleitorais, Guebuza “será responsabilizado pessoalmente” e perde margem de manobra para determinar o processo de sucessão.

Olhares no MDM

Devido à falta de comparência da Renamo, os olhares estão virados para os resultados do MDM, terceira força política no Parlamento. Liderado pelo actual presidente do município da Beira, Davis Simango, o partido, criado em 2009, tem mostrado capacidade de atracção de eleitorado jovem e pode capitalizar o descontentamento de eleitores descrentes na capacidade do Governo em encontrar soluções para arrancar o país da pobreza e dos que apontam o contraste entre o modo de vida de quem gravita na órbita do poder e a imensa maioria.

As eleições permitirão perceber se a simpatia que parece colher nos meios urbanos se materializará em resultados eleitorais que reforcem o peso do MDM, que além da Beira preside ao município de Quelimane. Ainda que Fernando Mazanga, porta-voz da Renamo, invoque Lavoisier para dizer que “dois corpos não ocupam simultaneamente o mesmo espaço”, é de admitir um crescimento autárquico que deixe o jovem partido em condições de ser uma alternativa com ambições nas eleições gerais do próximo ano. Fernando Gonçalves acredita que possa ganhar câmaras. Salomão Moyana, que se assume como crítico da governação, entende que, “se forem transparentes, as eleições têm potencial de ajudar a redesenhar o xadrez político do país”. Independentemente do calculismo político e da opção partidária, todos os moçambicanos com quem se fala estão, por estes dias, como Inácio, “a torcer para que haja um final feliz” para as ameaças que ensombram o país.
 
 

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