Reféns libertados: um acusa rebeldes pelo ataque químico, o outro desmente-o

O jornalista Domenico Quirico contradiz o seu companheiro de cativeiro durante cinco meses, o belga Pierre Piccinin, que diz ter provas de que foram os rebeldes que lançaram ataque químico nos arredores de Damasco.

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Domenico Quirico à chegada a Roma ANDREAS SOLARO/AFP

O jornalista italiano Domenico Quirico, de 62 anos, que foi libertado no domingo, após cinco meses raptado na Síria, está nesta segunda-feira a contar aquilo por que passou no seu cativeiro na Procuradoria de Roma, com vista a abrir uma investigação por terrorismo. E desmente o que o companheiro de cativeiro, o historiador e politólogo belga Pierre Piccinin, de 40 anos, disse em várias entrevistas: “É loucura dizer que eu sabia que não foi Assad que usou gás de nervos” no ataque nos arredores de Damasco a 21 de Agosto.

Pierre Piccinin, de 40 anos, desdobrou-se em declarações aos media belgas, desde que regressou ao seu país, esta manhã, relatando o que foi o seu cativeiro. A mais bombástica declaração foi a de que terão provas de que o regime de Bashar Al-Assad não terá sido o autor do ataque com armas químicas que os Estados Unidos consideram como a gota que fez derramar o copo.

As provas seriam uma conversa entre os seus captores que ele e Quirico escutaram por acaso. No entanto, não avançava pormenores – dizia que iria esperar pelo momento em que o jornalista do La Stampa publicasse o seu trabalho.

Ora Domenico Quirico, confrontado com as declarações do seu companheiro de cativeiro, desmente a interpretação que Piccinin faz da conversa escutada por acaso. “Estávamos a leste de tudo o que estava a acontecer na Síria durante a nossa detenção, e também sobre o ataque com gás em Damasco”, relatou o jornalista ao La Stampa. A conversa que ouviram foi através de Skype, em inglês, por três pessoas das quais ele não sabe o nome. Mas uma delas tinha-lhe sido apresentada antes como general do Exército de Libertação da Síria.

“Nesta conversa, diziam que a operação com gás nos arredores de Damasco tinha sido feito por rebeldes, como um acto de provocação, para levar o Ocidente a uma intervenção militar. E, segundo eles, o número de mortos era exagerado”, recorda Domenico Quirico. “Mas não sei se isto é verdade e ninguém me diz que seja mesmo assim, porque não tenho nenhum elemento que me possa confirmar esta tese, nem ideia alguma sobre a fiabilidade ou identidade destas pessoas. Não sei se esta conversa se baseava em factos reais ou era uma cavaqueira só sobre coisas que se ouviam dizer.”

E termina, lapidar, o enviado do La Stampa à Síria: “Não estou habituado a dar crédito a discursos ouvidos através de uma porta entreaberta”.

"Longa e terrível odisseia"
Piccinin, durante toda a manhã de segunda-feira, falou amplamente do cativeiro na Síria. Em declarações à rádio belga RTL, explicou que os dois entraram na Síria a partir do Líbano a 6 de Abril e, dois dias depois, estavam em Qusayr, no Centro do país. “Foi lá que o Exército Livre nos prendeu, para depois nos entregar à Brigada de Abu Ammar, assim chamada por causa do nome do seu chefe”, contou. “Estes eram pessoas desequilibradas, mais bandidos do que islamistas, mais ou menos doutrinadas pelas Brigadas de Al-Farouk, um dos principais grupos rebeldes envolvidos na luta armada contra o regime."

O Exército Livre da Síria é composto por uma série de grupos. As Brigadas de Al-Farouk são encaradas pelos analistas ocidentais como “moderadamente islamistas”, diz a BBC, talvez sublinhando as suas credenciais religiosas para atrair financiamentos dos Estados do Golfo que se envolveram na guerra da Síria – o Qatar e a Arábia Saudita, sobretudo. O vídeo surgido em Abril em que um homem aparecia a morder o que pretendia ser o coração de um soldado do regime era de um comandante de uma unidade deste grupo, a Brigada Independente de Omar al-Farouq.

O historiador e politólogo efectuava a sua sétima viagem à Síria desde o início da revolta popular em 2011. Inicialmente, era reticente quando ao levantamento contra o regime sírio, e apoiava Bashar Al-Assad. Mas, segundo conta, acabou por ser preso por forças de Assad, e torturado, e passou a apoiar a revolução.

Domenico Quirico foi mais parco em palavras a descrever o seu cativeiro. “É como se tivesse estado cinco meses em Marte. E descobrir que os marcianos são muito maus.” Estas foram as suas primeiras palavras depois de ter aterrado em Roma. 

Sobre o seu sequestro e o que sofreu, foi mais uma vez Piccinin, professor no Ateneu Real de Philippeville, que contou pormenores: “Às vezes houve violências físicas muito duras. Humilhações, falsas execuções. Domenico sofreu duas falsas execuções com uma pistola”, lembrou.

Estiveram presos em total reclusão durante dois meses, mas a certa altura o grupo teve de fugir do seu campo e levou-os com eles. “Começou uma longa e terrível odisseia através da Síria, com marchas forçadas de dia e noite. Chegámos a estar numa localidade perto da fronteira libanesa, mas sem o sabermos”, recordou o belga.

“Estivemos em muitos locais e nem sempre era o mesmo grupo que nos tinha. Alguns eram muito violentos, muito antiocidentais e islamistas anticristãos. Tratavam-nos com grande desprezo. Alguns dias nem nos davam nada de comer.” Tentaram fugir por duas vezes, mas foram capturados e castigados severamente.

O Exército Livre da Síria, entretando, desmentiu que tivessem sido eles a capturar o jornalista italiano e o politólogo belga. Através de um porta-voz, Fahad Al-Masri, citado pelo jornal La Repubblica, atribui a culpa à Jabhat al-Nusra, uma milícia islâmica com ligações à Al-Qaeda que se tornou um importante elemento das forças rebeldes na Síria.
 

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