Trump e o pós-politicamente correcto

Há um discurso que institucionaliza o Outro como bode expiatório, valoriza o desprezo pelos direitos humanos e assenta no desrespeito pela dignidade das pessoas.

O politicamente correcto é uma designação que abrange as políticas e medidas específicas destinadas a grupos sociais com uma história longa de discriminação e desvantagem social, assim como a linguagem e o tratamento não ofensivos dos membros desses grupos. Surge, nos EUA, na sequência dos movimentos de luta por direitos e oportunidades que marcaram as décadas de 1950 a 1970 e corresponde a uma cultura política que assenta, por um lado, na evidência científica produzida antes, durante e após aquele período sobre os efeitos sociais e psicológicos da discriminação continuada de determinados grupos e, por outro lado, na busca de um modelo de sociedade que reconheça a diversidade da sociedade americana, acolhendo nos locais de trabalho e no espaço público aqueles e aquelas que deles tinham sido excluídos, sem que fossem tratados como estranhos. Ao dar voz a grupos silenciados, até aí, desafiava claramente a cultura hegemónica, branca e masculina, que se habituara a afirmar e usufruir de uma posição de domínio político, social e económico.

Apesar das controvérsias suscitadas nos meios académico, político e mediático, este projeto de mudança fez o seu caminho. Nos meios académicos o debate resultava sobretudo da dúvida sobre a eficácia e a extensão da mudança das atitudes preconceituosas em relação a certos grupos, tão enraizadas no pensamento social, a partir de simples mudanças legislativas e de comportamento (um manual de um psicólogo social americano, dos anos 80, lembrava que as pessoas aprendem relativamente depressa a evitar expressões de preconceito em público, mas continuam a achar que uma piada racista, num círculo de amigos, fica sempre bem).

No meio político, o politicamente correcto tornou-se numa luta permanente entre os partidos Republicano e Democrata, já que a legislação mais determinada no combate à discriminação começa com o Presidente Johnson (o Civil Rights Act), dando seguimento a medidas preparadas na Administração anterior, e suscita logo a oposição do sector republicano pela suposta interferência do Estado na liberdade de recrutamento do sector privado.

Nos meios mediáticos, mais conotados com a direita republicana, a resistência ao respeito pela diversidade e ao uso da linguagem não ofensiva era feita em nome da liberdade de expressão. Com a chegada dos republicanos ao poder, a década de 80 será o período de todas as reversões e do backlash, para usar o título da vasta investigação jornalística sobre a guerra contra o feminismo, que é o livro de Susan Faludi (curiosamente e apesar do sucesso editorial nos EUA e na Europa, esta obra nunca foi traduzida para português). É nesse período que o politicamente correcto chega a Portugal, através dos meios de comunicação, acompanhado das conotações e distorções a que estava sujeito no debate da sociedade americana: histórias de exageros e de casos ridículos que serviam para caricaturar o termo, menorizar o projeto de sociedade que o inspirava e, sobretudo, manter a ignorância sobre as suas origens, deslocando a discussão do problema da discriminação social para as manias de certas pessoas em se tornarem vítimas…

E, no entanto, a cultura do politicamente correcto fez o seu caminho: as associações científicas e os conselhos editoriais das revistas científicas criaram normas de linguagem não preconceituosa e inclusiva e o mesmo fizeram jornais de referência em língua inglesa, francesa, alemã, enquanto as televisões mostravam preocupação pela representação da diversidade na escolha de pivôs e comentadores. Mudanças que exigiram algum esforço, sem dúvida, mas não deixaram de refletir a identificação com uma cultura inclusiva e respeitadora da dignidade das pessoas que faz parte do aprofundamento da democracia. Afinal, as línguas são dinâmicas, estão sempre a mudar, a integrar palavras novas, novas ortografias, novas regras, sem que isso ponha em causa a liberdade de expressão. Além disso, enquanto veículo de comunicação, a língua é, ao mesmo tempo, expressão de pensamento e transmissão de uma certa visão do mundo.

Mesmo em Portugal, onde estas mudanças são menos visíveis, as pessoas não tiveram qualquer dificuldade em compreender a violência que se abateu sobre a comunidade no seu conjunto quando, há uns anos, o termo de PIGS foi inventado para os países [Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha (Spain)] que se debatiam com problemas de dívida, os portugueses foram acusados de viver acima das suas possibilidades e sujeitos a todo o tipo de comentários degradantes e preconceituosos sobre a sua cultura, o seu estilo de vida e os seus hábitos de trabalho, por parte de dirigentes políticos de outros países e de responsáveis europeus. Para além do efeito sobre a auto-estima coletiva, estes acontecimentos contribuíram para a degradação das relações entre membros da União Europeia e geraram distanciamento das pessoas em relação ao projeto europeu. Mas também mostraram que a diplomacia não pode prescindir do politicamente correcto, ou seja, do respeito entre países, sob pena de falhar a sua própria missão.

O sinal mais evidente de quão profundamente tínhamos integrado o politicamente correcto foi a reação dos meios de comunicação ao discurso misógino, racista e xenófobo de Donald Trump. O então candidato iniciou a campanha declarando que vinha pôr fim ao politicamente correcto e que nada, nem ninguém, o impediria de dizer o que muito bem lhe apetecia, pois isso fazia parte do seu projeto de fazer a América grande outra vez. O que ele disse, em várias ocasiões, em público e em privado, deixou muita gente chocada.

Retomando uma opinião difundida nos anos 80, o seu discurso vinha reafirmar a masculinidade hegemónica e a supremacia branca que tinham sido supostamente diminuídas com o esforço de integração das mulheres e das minorias, na diversidade dos seus talentos, inteligências e aspirações e que culminara com a eleição de um Presidente negro. Os raros comentários sobre os resultados eleitorais que se desviaram da indignação da maioria face à hecatombe cultural que a campanha representara, preferindo salientar a zanga da parte dos eleitores que contribuíram para a sua vitória, não foram capazes de explicar por que razão tal zanga se tem que manifestar sob a forma de um discurso que institucionaliza o Outro como bode expiatório, valoriza o desprezo pelos direitos humanos e assenta no desrespeito pela dignidade das pessoas.

Em Portugal, as análises dos resultados eleitorais não prestaram muita atenção ao facto de a maioria das mulheres negras terem votado em Hillary Clinton. Talvez porque elas ocupam a posição mais desfavorecida, na intersecção do sexo com a cor da pele, estas eleitoras deram o seu voto de confiança a uma candidatura que defendia um modelo de integração da diversidade, fundamental para a sua esperança de futuro.

Hoje, e perante a brutalidade dos comentários que têm sido produzidos sobre Michelle Obama, remetendo-nos para formas de racismo do século XIX, é claro que entrámos numa outra cultura política, caracterizada pela (re)emergência do racismo, do sexismo, da xenofobia, do antissemitismo e de formas de pensamento fanáticas e arcaicas que pensávamos já terem sido esquecidas. Vamos ter saudades do politicamente correcto.

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