Trump contra Trump e o mundo às avessas

Se a resposta de Washington à barbárie insustentável da ditadura síria é justificável, já não o é a desorientação total do comportamento de Trump.

Depois de Nice, Berlim, Londres, foi agora a vez de Estocolmo. Os ataques de camião no centro das cidades ameaçam tornar-se um padrão dominante do surto terrorista na Europa. Por mais medidas de segurança que se tomem — e têm-se tomado —, é literalmente impossível prevenir a repetição de atentados contra quem caminha (tranquilamente?) nas ruas. A tranquilidade pública é o alvo dos terroristas, e se cedermos à chantagem, ao pânico, as nossas sociedades abertas passarão a ser fortalezas fechadas sobre si próprias. É isso o que querem os terroristas e os seus “aliados objectivos”, a extrema-direita xenófoba e eurofóbica.

Não por acaso, ao contrário da maioria dos líderes europeus e ocidentais, Marine Le Pen, fervorosa apoiante de Donald Trump, manifestou-se contra a operação americana visando instalações militares do regime de Assad, depois do selvático ataque com armas químicas perpetrado pelas forças governamentais e que provocou numerosas vítimas civis na Síria. Entre Putin e Trump, Le Pen inclinou-se a favor do primeiro, seu parceiro ideológico e estratégico (além de financiador) e protector da ditadura de Damasco. O seu adversário da direita tradicional, François Fillon, também ele submisso ao líder russo, não divergiu muito dessa atitude.

A reviravolta do Presidente americano apanhou quase toda a gente de surpresa, tendo em conta que Trump nunca escondera a sua admiração por Putin e vinha condescendendo com a permanência de Assad no poder como uma fatalidade na luta contra o chamado Estado Islâmico. Aliás, Trump criticara duramente Obama por ter decretado as “linhas vermelhas” que impediriam o regime de Assad de recorrer a armas químicas. Mas Obama acabou por renunciar ao uso da força, apostando num compromisso diplomático inconsequente e, agora, é Trump que, renegando a sua postura anterior, toma a iniciativa de castigar Assad e afrontar Putin.

Como explicar este surpreendente desfecho? Com o caos instalado na Casa Branca desde o início do mandato, o novo Presidente foi sendo sucessivamente ultrapassado pelo efeito de boomerang das suas iniciativas erráticas até ao ponto de ter de afastar há poucos dias o seu consultor estratégico todo-poderoso e ultra-direitista notório, Stephen Bannon, do cargo que ocupava no Conselho de Segurança Nacional. Trump precisava de dar uma prova de vida, custasse o que custasse, embora em contradição ostensiva com as suas posições recentes. Aliás, foram essas posições que terão levado Assad — e Putin — a dar por adquirida a benevolência ou pelo menos a neutralidade de Trump face a qualquer iniciativa bélica mais brutal ou descontrolada por parte do regime sírio.

Ora, com Trump o mais imprevisível acontece. Imagens de crianças mortas durante o ataque químico dos militares sírios serviram para testemunhar os “actos odiosos do regime de Assad” que “não podem ser tolerados”, segundo o Presidente americano, subitamente indignado e em ruptura virulenta com Damasco e Moscovo.

Se a resposta de Washington à barbárie insustentável da ditadura síria é justificável, já não o é a desorientação total do comportamento de Trump. Ele abriu caminho à presunção de impunidade de Assad — e Putin — e, nesse sentido, confirmou os piores receios suscitados pela sua eleição. Trump contra Trump (até para sobreviver na Casa Branca) pode colocar o mundo às avessas — e à beira do abismo. É isso, precisamente, o que desejam os terroristas e seus aliados — “objectivos” ou não.

Sugerir correcção
Ler 47 comentários