"O aquecimento global vai provocar vagas de refugiados muito maiores"

Kerry Kennedy começou a trabalhar com refugiados há 35 anos. Veio a Portugal lançar o manual para a educação sobre direitos humanos que nasceu com o seu livro Diz a Verdade ao Poder, 51 entrevistas e exemplos de coragem.

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Kerry Kennedy na Fundação Gulbenkian, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Desde 1981 que Kerry Kennedy trabalha diferentes áreas de direitos humanos, da pena de morte aos direitos das minorias sexuais, das mulheres e das crianças; da escravatura à protecção ambiental. Preside ao Centro Robert F. Kennedy para a Justiça e Direitos Humanos, criado para continuar o legado de luta pela justiça do pai, senador e procurador-geral, defensor dos direitos cívicos, assassinado em 1968. O centro conta com uma rede de peritos e advogados e apoia activistas em todo o mundo. Formada em Direito, activista e escritora, Kerry Kennedy já assinou vários livros: um deles, Speak Truth to Power, transformou-se num manual para ao direitos humanos que já chega a um milhão de alunos e que agora foi traduzido para português.  

Quando decidiu escrever Diz a Verdade ao Poder já pensava que se podia tornar numa ferramenta mais abrangente?
Não, quando comecei só tinha na cabeça escrever o livro. Tenho três filhas e queria descobrir se a coragem é algo com que se nasce ou se podemos ensiná-la aos nossos filhos. Das 51 pessoas que entrevistei, 46 tinham estado na prisão e sido torturadas. O que mais me surpreendeu foi o sentido de humor. Quando oiço as gravações das entrevistas eu não paro de rir, estou às gargalhadas em todas as conversas. Concluí que os sobreviventes, as pessoas que não só sobreviveram mas que depois foram muito bem-sucedidas e se tornaram líderes, têm um enorme sentido de humor. Isso é fundamental para ultrapassar o que lhes aconteceu, o tipo de pressão a que foram sujeitos. Quando pensamos em resistência e capacidade de adaptação, o sentido de humor é uma qualidade extraordinária, muito importante.

E como é que essas entrevistas e essa conclusão evoluíram para um manual educativo?
Completamente por acaso. Uma amiga quis organizar-me uma festa de lançamento. Depois, sugeriu-me que eu lesse excertos e eu pensei que era uma boa ideia. A seguir que pedisse a actores que o fizessem por mim e que a festa fosse no Centro Kennedy para as Artes Performativas em Washington. Eu não fazia ideia de que excertos escolher e lembrei-me de uma peça que tinha visto 15 anos antes e que tinha adorado, Death and the Maiden [sobre uma antiga prisioneira política que, depois de anos em liberdade, encontra e reconhece o homem que a violou e decide fazê-lo refém para o julgar e obrigar a confessar]. Descobri que a peça tinha sido escrita pelo dramaturgo Ariel Dorfman e consegui o contacto dele. Pedi-lhe para escolher os excertos por mim e ele não ficou muito contente, disse que tinha mais que fazer. Prometi-lhe que se escolhesse os excertos nunca mais lhe telefonava. Ele esteve três dias sem me dizer nada e depois telefonou-me a dizer que tinha conseguido 90 dias livres para escrever uma peça. Para mim era só um livro, para ele tinha de ser uma peça, disse tinha nascido para escrever esta peça

E com a peça começou a fazer sentido levar o trabalho às escolas?
Exacto, começámos a pensar que valia juntar tudo, integrar uma exposição de retratos dos entrevistados. O projecto chegou às escolas no mesmo dia no mesmo dia em que a peça estreou. Está em 17 países, acabámos de lançar o programa na Noruega, vamos lançá-lo aqui. Já chega a cerca de um milhão de alunos dos cinco aos 23 anos.

O manual integra as histórias destas pessoas, propõem-se materiais de apoio aos professores, exercícios, mas a ideia é que em cada escola adapte os currículos à realidade que os alunos conhecem.
Sim, e não é só isso. Nós não pedimos aos professores para ensinar nada de completamente novo nem para ensinar ainda mais do que já ensinam, os professores já trabalham muito. A ideia é que adaptem os conteúdos que já fazem parte dos currículos e é nisso que os ajudamos. Se têm de ensinar Poesia, por exemplo, sugerimos-lhes que ensinem poemas sobre assuntos ligados aos direitos humanos; podemos pedir-lhes que aprendam Matemática com o custo da escravatura.

O manual também toca na questão dos refugiados. Há uma crise mundial de refugiados, com parte deles a chegar a Europa e vários governos a decidir fechar as portas em vez de procurar soluções, com muito do trabalho a ser feito por voluntários. Como é que se obriga os governos a agir?
Os governos têm de ser responsabilizados, pressionados a agir. Não é fácil. E mesmo que um governo esteja a trabalhar num determinado assunto não significa que a sociedade civil não tenha um papel a cumprir. Os problemas são tão grandes e o mundo é tão complexo actualmente que todos temos uma responsabilidade. Seja qual for o nosso objectivo, todos temos de participar. Principalmente nos temas mais divisivos, como acontece com os refugiados. Muito poucas pessoas são indiferentes a esta questão. As pessoas ou reagem com compaixão ou têm uma resposta negativa e opõem-se à vinda de refugiados. Isso é perigoso. Há muito para fazer nas nossas próprias comunidades para influenciar as opiniões de outros.

Começou a trabalhar precisamente com refugiados.
Exactamente, comecei em 1981 a documentar abusos cometidos por responsáveis da Imigração contra refugiados que chegavam de El Salvador.

Parece que ninguém estava preparado para esta crise. Mas sempre houve refugiados e imigração.
Sim, é uma questão permanente. E esta vaga de refugiados e imigrantes não é nada comparado com o que teremos de enfrentar. O aquecimento global vai provocar vagas muito maiores. A desertificação em diferentes zonas de África, as inundações que vão continuar no Bangladesh, as perturbações na vida de pessoas em todo o mundo...

E estamos preparados para lidar com essas novas crises, a juntar aos conflitos antigos e mais recentes que o mundo já enfrenta?
O que sei é que temos de aceitar isso esta inevitabilidade. Temos de parar de tentar proteger aquilo que temos e perceber que só podemos viver se o fizermos em conjunto, se trabalharmos com os outros, de outros sítios, em comunidade. Esta conferência na Gulbenkian é sobre isso, exactamente, estas 24 horas não são um exercício intelectual, são um exemplo de como pessoas de sítios diferentes se podem juntar para enfrentar desafios, aprender umas com as outras e entreajudar-se.

Se nos concentrarmos na educação teremos melhores líderes?
Sim, e nós queremos chegar a sítios muito diferentes. O programa está na Europa, nos EUA, no Canadá, Camboja, Ruanda, Libéria, África do Sul. Em zonas onde as pessoas são mais marginalizadas mas também onde o poder se concentra. A ideia é fazer de Portugal a porta de entrada no mundo que fala português, a seguir vamos trabalhar para levar o projecto para Timor-Leste, onde temos um grande interessado, José-Ramos Horta, um dos entrevistados.

As crianças são muito susceptíveis. Se falarmos com qualquer miúdo com menos de dez anos ele vai dizer muito depressa ‘isto não é justo’; eles já sabem o que é justo e não é. Os adolescentes estão preparados para questionar a autoridade e essa é uma energia que pode ser redireccionada e aproveitada para as causas certas, podemos levá-los a questionar a opressão. É um processo em que estes miúdos acabam por perceber que têm valor e que podem fazer a diferença, que cada um pode melhorar a sua comunidade

Não tem falado muito da campanha presidencial nos EUA, mas agora já sabemos quem serão os candidatos.
Eu faço parte de uma família política. E sei que a forma mais fácil de um político ser eleito é apelar ao que há de mais básico nas pessoas, a raiva, o medo, o ódio. Foi isso que Donald Trump fez. Culpa os outros, diz que ia construir um muro, que todos os mexicanos são violadores.

E propôs bloquear a entrada de todos os muçulmanos nos EUA.
Exacto, a Malala [Yousafsai, uma das entrevistas, atacada pelos taliban por insistir em estudar, é a mais jovem Nobel da Paz de sempre, aos 17 anos] impedida de entrar por ser uma potencial ameaça terrorista… É de doidos. Mas ele não vai ganhar.

Mesmo sem ser eleito, é o candidato republicano, teve todo este tempo de antena e reuniu um grande apoio. Não há consequências já, pelo menos para a imagem dos EUA?
Sim, e não só. Trump já fez muito mal ao nosso país e ao mundo. É irresponsável falar assim, pode pôr vidas em risco e pode pôr pessoas a pensar que não faz mal atacar outros só porque são diferentes. É uma espécie de ensino do ódio, quando devíamos ensinar respeito, que é exactamente o que nós tentamos fazer com o programa educativo.

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