Conflito israelo-palestiniano já fez duas baixas na gestão de Guterres

Num caso, Guterres quis promover um palestiniano — e perdeu. Noutro, enfrentou uma colega que usou a palavra "apartheid " para descrever Israel — e ganhou. Mas nada é assim tão simples.

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Os dois episódios evidenciam como o conflito israelo-palestiniano atravessa todos os dias a vida de um secretário-geral da ONU REUTERS/Ammar Awad

Em três meses, António Guterres teve duas baixas na sua hierarquia de topo por causa do conflito israelo-palestiniano: Rima Khalaf e Salam Fayyad. São casos diferentes, mas o pano de fundo é um só. Juntos, os dois episódios evidenciam como o conflito entre israelitas e palestinianos atravessa todos os dias a vida de um secretário-geral da ONU: as pressões são fortíssimas e constantes, e as palavras têm de ser medidas em balanças de alta precisão.

Rima Khalaf, uma jordana de origem kuwaitiana, demitiu-se em Março do cargo de directora executiva da Comissão da ONU para questões económicas e sociais da Ásia ocidental (ESCWA, na sigla inglesa), depois de Guterres lhe ter pedido que se retractasse em relação a um relatório crítico sobre Israel. E Salam Fayyad, antigo primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana e a escolha de Guterres para chefiar a missão da ONU na Líbia, foi vetado pelos EUA em Fevereiro.

No caso de Fayyad, houve uma clara derrota para Guterres. Quando o nome foi proposto, a nova embaixadora dos EUA junto das Nações Unidas, Nikky Haley, emitiu uma nota no novo tom que a administração de Donald Trump introduziu na vida diplomática: “Os Estados Unidos estão decepcionados por ver uma carta a indicar a intenção de nomear o ex-primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana para liderar a missão da ONU na Líbia. Há demasiado tempo que a ONU é injustamente tendenciosa a favor da Autoridade Palestiniana, em detrimento dos nossos aliados em Israel. Os EUA não reconhecem um Estado palestiniano, nem apoiam o sinal que esta nomeação transmitiria às Nações Unidas. Mas encorajamos os dois lados a encontrarem juntos uma solução. Daqui para a frente, os EUA vão agir, não apenas falar, para apoiar os seus aliados.” Três dias depois, no Dubai, Guterres respondeu: Salam Fayyad “é a pessoa certa para o cargo certo no momento certo”. O nome, no entanto, caiu.

O episódio da demissão de Rima Khalaf é mais complexo. A directora executiva da ESCWA publicou um relatório no site da sua agência, com sede em Beirute, no qual se lê que “Israel estabeleceu um regime de apartheid que oprime e domina o povo palestiniano como um todo”. O governo israelita fez démarches imediatas, públicas e privadas, e Guterres pediu a Rima Khalaf um gesto de distanciamento em relação ao relatório.

“Do ponto de vista não-diplomático, não é a primeira vez que é feita a comparação entre os territórios ocupados e o apartheid, mas é a primeira vez que acontece num documento produzido no âmbito institucional das Nações Unidas e, por isso, assume uma dimensão política grande”, diz Ana Santos Pinto, professora de relações internacionais da Universidade Nova de Lisboa e investigadora do IPRI.

Na sua opinião, a decisão de Guterres não é necessariamente uma cedência aos EUA ou a Israel. Aceitar o relatório seria a “assunção de uma expressão que não faz parte do léxico da ONU e que tem uma dimensão simbólica muito significativa”. E abria um precedente: “Aparecendo num relatório com a chancela da ONU, a palavra apartheid passaria a ser usada como linguagem da ONU”, diz a especialista em Médio Oriente, cujo doutoramento é sobre o conflito israelo-palestiniano. “E isso poderia diminuir a capacidade de a ONU afirmar-se como mediador imparcial.” Dá um exemplo: “Usar na diplomacia a expressão ‘guerra civil’ é completamente diferente de dizer ‘conflito armado’. As palavras têm relevância política. Materializam, através do discurso, algo que a seguir pode ser replicado. Ganha substância e realidade.”

Guterres teve o seu primeiro “embate” no conflito israelo-palestiniano logo em Janeiro. Numa entrevista a uma rádio israelita, o secretário-geral português disse que, para si, era completamente claro que o templo que os romanos destruíram em Jerusalém (o chamado Monte do Templo) era um templo judaico. Mas em Outubro, a UNESCO aprovou uma resolução que omite a ligação desse templo aos judeus — e afirma a ligação histórica do lugar sagrado aos muçulmanos. As autoridades palestinianas exigiram um pedido de desculpa e fizeram uma grande campanha para repudiar as declarações.

“Mas nenhum Estado europeu fez declarações sobre o assunto”, nota Ana Santos Pinto. “A maior parte dos Estados-membros da União Europeia que estão na UNESCO votaram contra ou abstiveram-se no voto da resolução sobre o Monte do Templo.” Ou seja, não rejeitaram a posição de António Guterres.

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