As eleições francesas no ciclo longo

O processo político move-se hoje entre dinâmicas inovadoras e inércias conservadoras. Macron é um catalisador das primeiras.

1. É especialmente gratificante poder escrever sobre as presidenciais francesas no dia da Europa. No domingo passado, na contenda eleitoral entre um europeísta assumido e uma populista soberanista e xenófoba, fez-se Europa. Não se pense que corre aqui algum entusiasmo ingénuo ou um regozijo pueril de um federalista empedernido (sim, sou europeísta e federalista). Já aqui se escreveu e voltará a escrever-se sobre a complexidade da situação política francesa e, já agora, da conjuntura política europeia e ocidental. Não existe, portanto nenhum optimismo bacoco nem sequer esperança leviana. Pelo contrário, subsiste uma consciência densa e pesada das dificuldades que esperam a União Europeia, o continente europeu e o Ocidente como um todo. Mas há um ponto, já muito glosado na comunicação social, que tem de ser destacado e que não pode ser desvalorizado: a vitória de Macron é a vitória de uma visão manifestamente pró-europeia. Ele vê a França como parte da União Europeia e vê na União a solução para muitos dos problemas do seu país.

Nos últimos anos, mesmo em Portugal – até por entre partidos claramente europeístas como o PSD, o PS e o CDS – não mingua quem faça concessões e cedências à agenda “populista” e “soberanista”. As presidenciais austríacas e as legislativas holandesas foram um exemplo acabado de partidos claramente pró-europeus que respigaram algumas das causas dos eurocépticos e que procuraram contemporizar com um programa e um discurso largamente condicionado pelos políticos populistas e extremistas. Muitos acham que só recauchutando algumas das bandeiras da extrema-direita e da extrema-esquerda podem vencer eleições ou ter resultados satisfatórios. Julgam por conseguinte que é preciso pescar nas águas do nacionalismo, do proteccionismo, do “soberanismo” e, às vezes, da xenofobia para poder ganhar eleições. Pensam pois que quem assumir a defesa da União Europeia está condenado a perder votos, senão mesmo a perder eleições. Ora, o eixo programático e discursivo de Macron prova exactamente o contrário. E, por isso mesmo, e essencialmente por isso, a sua eleição merece uma celebração especial. De resto, este não é um caso único. Num país a que damos pouca atenção, a Croácia – o mais jovem dos membros da União Europeia –, o actual Primeiro-Ministro Andrej Plenkovic ganhou eleições contra todas as sondagens justamente com a mesma estratégia. Contra um eurocepticismo crescente com grande receptividade mediática antepôs – de modo honesto e sem romantismos – as vantagens da integração europeia. Venceu.

A opção política de Macron vai dar-lhe uma legitimidade e uma influência de que o Presidente francês não goza há largo tempo no seio da União Europeia. E isso permitirá decerto dar alguns passos e fazer alguns avanços que, há algum tempo atrás, se teriam por insuspeitados. Irá, aliás, dar força a uma mão cheia de chefes de governo que, querendo ousar um pouco mais, se sentiam manietados ou limitados por um ambiente geral de “condicionamento” ou até de “quase-chantagem”. Mais uma vez, não há aqui optimismo ingénuo; há apenas realismo político.

2. Um realismo que tem de ser usado também contra os profetas da desgraça, que desde ontem já só falam do impressionante número de votantes na candidata da Frente Nacional, de como ela os vai multiplicar daqui a cinco anos e da potencial ingovernabilidade da França no pós-eleições legislativas de Junho. Esse realismo obriga a reconhecer que a principal linha divisória está hoje entre as forças nacionalistas do fechamento e as forças favoráveis a uma abertura das comunidades políticas. Essa linha de divisão tem-se projectado em todo o espaço ocidental, dos Estados Unidos às ilhas britânicas, do leste europeu aos países fundadores. A circunstância de, em França, as forças nacionalistas terem sido derrotadas só pode ser vista como positiva e tem de ser perspectivada como uma oportunidade para ultrapassar este ciclo diabólico de eleições sempre à beira do abismo. Não vejo, por isso, vantagem em prognosticar o que vai passar-se daqui a cinco anos: basta olhar para o último ano para perceber que essas previsões estão condenadas ao fracasso. Nem vejo motivos para o pessimismo generalizado sobre o desfecho das eleições parlamentares francesas e sobre o funcionamento futuro do sistema de governo da V República. Ao invés da narrativa corrente, a constância de funcionamento é uma miragem. A presidência de Giscard nada tem que ver com as anteriores, as duas coabitações de Mitterrand nada têm que ver com a coabitação longa de Chirac. E as presidências Sarkozy e Hollande não podiam ser mais diversas dos consulados dos seus predecessores. Haverá, portanto, um momento novo, em que a reconfiguração do sistema partidário jogará um papel central. Mas nada obriga a que Le Pen venha a converter-se na chefe da oposição. Tudo depende de como actuarem os protagonistas políticos das forças em presença. É desses que temos de reclamar a capacidade de estar à altura das circunstâncias.

3. Já faz uns anos, chamei aqui a atenção para que uma entidade política de tipo federal ou aparentado nunca surgiu sem uma clivagem política funda entre as forças pró-integradoras e as forças contra a integração. Por isso, saudei a chegada visível de movimentos anti-europeus ao hemiciclo de Estrasburgo em 2014. Como é evidente, tais movimentos só são bem vindos ao debate político se possuírem credenciais democráticas impecáveis, o que é manifesto no caso dos conservadores britânicos. Vistas as coisas num ciclo longo, esta série de enfrentamentos, apurados Estado a Estado, eleição a eleição, pode muito bem ser uma experiência constitutiva (ou constituinte) dessa clivagem fundadora. De algum modo, o Brexit foi uma presciência desse momento fundacional e representa a sua recusa categórica. O processo político move-se hoje entre as dinâmicas inovadoras e as inércias conservadoras. Macron é um catalisador das primeiras.  

SIM

António Pires de Lima. Advogado da cabeça aos pés, bastonário destemido e corajoso, referência ética incontornável, pôs a sua iconoclastia ao serviço da intervenção cívica. Os cidadãos perderam um porta-voz. 

NÃO

PS e o Porto. Pela boca de Catarina Mendes, o PS da geringonça deixou cair a máscara do mais puro oportunismo. A política no seu pior. Talvez o PCP e o BE devessem aprender algo com a desfaçatez deste PS.

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