A fúria anti-Trump ainda não colou os cacos do Partido Democrata

Vai crescendo a contestação interna à líder democrata na Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi. Depois do descalabro nas presidenciais, o partido está a ter dificuldades para encontrar um caminho que o leve à vitória nas eleições para o Congresso.

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Nancy Pelosi é vista pelos mais progressistas como uma líder ultrapassada Joshua Roberts/Reuters

Em Novembro do ano passado, mais de meio mundo assistiu de boca aberta e olhos esbugalhados à vitória do Partido Republicano e do seu candidato rebelde, Donald Trump, nas eleições para a Casa Branca e para as duas câmaras do Congresso norte-americano. Assim que essa informação foi digerida – muitas horas e até dias ou semanas depois –, os mecanismos de sobrevivência entraram em acção, e uma multidão inundou as ruas e as redes sociais para fazer uma promessa: aquela reviravolta estonteante num guião que aparentemente já estava escrito ia durar pouco tempo. Afinal, que explicação havia para que os eleitores tivessem posto na Casa Branca um louco senão um gigantesco voto de protesto já visto em outras ocasiões?

Quase oito meses depois, e para espanto de muita gente, se é verdade que o Partido Republicano tem vários sinais de perigo espalhados pelo caminho, não é menos verdade que o Partido Democrata ainda nem sequer encontrou o seu próprio caminho para derrotar os adversários – a nível nacional não tem rostos que tranquilizem os eleitores e os ataques internos na bancada do partido na Câmara dos Representantes saltaram do recato dos corredores para a gritaria dos programas de televisão.

Mesmo que os erros e os tiros no pé do Partido Republicano e de Donald Trump sejam um convite ao desastre eleitoral na próxima grande oportunidade, isso pode não chegar para que o Partido Democrata cumpra os mínimos na era Trump e reconquiste a maioria na Câmara dos Representantes.

Voltar a mandar na Câmara dos Representantes é mesmo o mínimo depois de tanta fúria anti-Trump, porque o Partido Democrata precisa de um milagre para recuperar a maioria no Senado – em Novembro de 2018, os democratas vão defender 25 lugares no Senado e os republicanos apenas oito. E os problemas não se ficam por aqui.

Dos 25 estados em jogo que actualmente têm senadores do Partido Democrata, dez deram a vitória a Donald Trump na corrida contra Hillary Clinton no ano passado, e em seis desses dez a diferença entre os candidatos à Casa Branca foi entre oito e 42 pontos percentuais. Na prática, a esperança do Partido Democrata nas eleições para o Senado em 2018 é não perder ainda mais lugares para os republicanos e esperar por 2020 para reconquistar a maioria – num ano em que Trump deverá voltar a ser avaliado pelos eleitores e em que o mapa eleitoral no Senado é mais favorável aos democratsa.

Centristas vs progressistas

Mas a corrida para a Câmara dos Representantes é outra história – apesar de não ser fácil, o Partido Democrata precisa de roubar apenas 24 lugares ao Partido Republicano, num mapa em que os candidatos democratas vão ser muito competitivos em cerca de 90.

Sim, é verdade que Donald Trump é visto por grande parte dos eleitores americanos (e talvez pela maioria do resto do mundo) como um infeliz cruzamento entre o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde, só que sem o Dr. Jekyll. Mas a questão neste momento é outra: mesmo com toda essa carga negativa, e com as sondagens a gritarem índices de popularidade abaixo de cão, de que serve a fúria anti-Trump dos primeiros meses após as eleições para a Casa Branca se o Partido Democrata não conseguir roubar, no mínimo, a maioria do Partido Republicano na Câmara dos Representantes? Um ano e cinco meses pode ser muito tempo para muitas coisas, mas em política americana é já este fim-de-semana.

E é por isso que a liderança do Partido Democrata na Câmara dos Representantes está sob uma pressão interna, principalmente depois de os seus candidatos terem perdido as quatro oportunidades que tiveram já este ano para roubarem lugares ao Partido Republicano. É verdade que essas quatro eleições especiais realizaram-se em distritos eleitorais dominados por candidatos republicanos há anos, mas é também precisamente por isso que a ala mais progressista (e descontente) dos democratas queria ver pelo menos uma vitória, para mostrar ao resto do país que o Partido Republicano tinha mais do que razões para temer uma vingança no próximo ano, e que o Presidente Donald Trump já estava a ser punido pela humilhação de Novembro.

Foi um congressista democrata quem o disse na semana passada, depois de uma dessas derrotas eleitorais, num distrito do estado Georgia: a "marca" do Partido Democrata é "tóxica" em muitas zonas do país e chega a ser "pior do que a de Trump", porque os eleitores entendem que os democratas "não estão a ser capazes de compreender os assuntos que os preocupam".

A autocrítica foi feita por Tim Ryan, um congressista do Ohio, de 43 anos, que tentou sem sucesso afastar a líder do Partido Democrata na Câmara dos Representantes logo após o desastre eleitoral de Hillary Clinton e do seu partido no ano passado.

Talvez já poucos se lembrem, mas as palavras que saíram da boca do congressista democrata são iguais às que saíram da boca de muitos eleitores do Partido Republicano no ano passado – a liderança dos partidos, aquilo a que eles chamam o establishment, está ultrapassada e é preciso dar um murro na mesa. No Partido Republicano, o murro foi tal que impulsionou um populista anti-establishment para a Casa Branca; falta saber se o Partido Democrata vai ser forçado a seguir o mesmo caminho para aumentar as hipóteses de matar a maioria que o Partido Republicano tem na Câmara dos Representantes, ou se vai ser suficiente apostar em candidatos mais ao centro – um caminho aparentemente recusado pelos eleitores nas eleições do ano passado para a Casa Branca e para o Congresso.

Alvo: Nancy Pelosi

No caso do Partido Democrata, depois da saída de cena de Hillary Clinton, a mochila do establishment ficou a pesar nos ombros de Nancy Pelosi, a líder da bancada do partido na Câmara dos Representantes. Aos 77 anos, é uma das personalidades mais respeitadas e temidas no Partido Democrata e a principal inimiga de estimação do Partido Republicano. O seu nome surge muitas vezes em anúncios de candidatos do Partido Republicano como se fossem anúncios do tipo "Nancy Pelosi faz mal à saúde".

Pelosi tem sido a comandante, a âncora e o bote salva-vidas de milhares de candidatos do Partido Democrata na última década, mas agora vê-se no papel da figura desgastada e ultrapassada sem nenhum outro destino que não seja a reforma. Já foi speaker da Câmara dos Representantes (cargo equivalente ao de presidente da Assembleia da República), e foi muito graças a ela que o Presidente Barack Obama conseguiu fazer passar o seu Obamacare, após uma intensa batalha no Congresso – e é por isso que os republicanos agitam o nome dela quando querem assustar os eleitores conservadores indecisos.

Para além da sua capacidade negocial, Pelosi é admirada – e respeitada e temida – no Partido Democrata porque só os Clinton conseguiam angariar mais fortunas do que ela para as campanhas dos candidatos nas várias eleições. Esse estatuto quase que lhe garante a continuidade na liderança do partido na Câmara dos Representantes pelo menos até Novembro de 2018. Mas o passado recente de derrotas e o presente de contestação podem ser sinais de que o seu fim político está próximo – e são sinais de que o Partido Democrata ainda está longe de encontrar o equilíbrio necessário para ser visto como a bandeira do descontentamento e da fúria anti-Trump.

A actual contestação de alguns congressistas democratas à liderança de Nancy Pelosi é um reflexo da contestação dos eleitores de Bernie Sanders a Hillary Clinton no ano passado. Para os mais progressistas, Pelosi corporiza tudo o que está mal no partido: fica a meio, não arrisca, quer uma estratégia feita à medida de cada candidato, o que implica às vezes dizer que Trump é o Diabo e outras vezes admitir que é possível dialogar com ele.

É tempo de ganhar

Foi isso que aconteceu nas quatro eleições especiais que o Partido Democrata perdeu este ano: enquanto o candidato Jon Ossoff vestiu a pele de centrista num distrito da Georgia cheio de republicanos com rendimentos elevados e cursos superiores, outros candidatos em distritos mais rurais no Montana e no Kansas vestiram a camisola de Bernie Sanders – todos eles tiveram melhores resultados do que os candidatos do Partido Democrata em anos anteriores, mas a verdade é que nenhum deles ganhou um único lugar ao Partido Republicano.

Para os contestatários no interior do Partido Democrata já começou uma corrida contra o tempo. Mais do que calculismo, é preciso "partir para a ofensiva", como disse a congressista Debbie Dingell, do Michigan. "Temos de mostrar aos trabalhadores e às trabalhadoras que percebemos a sua ansiedade e os seus medos, e temos de lhes mostrar que Trump está a tratá-los como qualquer outro político", disse a congressista ao The New York Times. Na prática, o que a ala progressista do Partido Democrata queria era testar um caminho diferente nas eleições especiais na Georgia, no tal distrito cheio de republicanos com rendimentos elevados e cursos superiores.

Em vez de um discurso centrista, o candidato Jon Ossoff devia ter vestido a pele de um Bernie Sanders mais jovem – se a corrida tivesse sido ainda mais disputada, ou se o democrata tivesse ganho, então o partido poderia ter ficado mais cedo com uma ideia de que o discurso anti-Trump puro e duro é um caminho unificador e viável para recuperar a maioria na Câmara dos Representantes no próximo ano.

"De facto é um pouco surpreendente que os democratas ainda não tenham conseguido uma única vitória, e que ainda não tenham tido mais sucesso em transformar a raiva contra a Administração Trump em algo tangível", disse à revista The Atlantic o director do Centro de Pesquisas Eleitorais da Universidade de Wisconsin-Madison, Barry Burden. E deixou um aviso: "O partido até pode ir contornando essa situação por uns tempos, mas a partir de um certo ponto  pode tornar-se num factor desmoralizador."

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