Fazes sapatos? Antes do acordo colectivo de trabalho, lê Ben Sira

Só posso dar um conselho às operárias da indústria do calçado: exigir em tribunal as remunerações ilegalmente retidas pelos seus empregadores, mesmo que isso implique que estes tenham de vender o Ferrari.

No livro de Ben Sira, 9, do Velho Testamento, que admito que não seja a leitura mais comum nos nossos dias, alerta-se constantemente o homem para que seja prudente com as mulheres.  Por exemplo com as bailarinas ou com as mulheres levianas e até com as donzelas – neste caso, apenas porque o homem poderá “ser punido com ela”. “Não te entregues a uma mulher ao ponto de ela vir a dominar-te”, previne-se o homem incauto (Ah! Pena esta minha leitura ter sido tão tardia...). Numa palavra breve, a mulher representa um risco. Não estranha, portanto, que este livro esteja entre os denominados como “sapienciais”.

Entretanto passaram mais de dois mil anos e ainda nos alegramos ingenuamente com o facto de a nossa indústria do calçado, em 2017, se preparar para terminar com a discriminação salarial entre homens e mulheres, o que eu julgaria impossível ainda existir, por me parecer inconstitucional e ilegal há muito tempo – diria que pelo menos desde 1976.

Pelos vistos não o era ou ninguém se preocupou muito com isso até agora, talvez porque os políticos só querem ouvir boas notícias da economia real e detestam que os empresários lhes digam que terão de despedir trabalhadores se tiverem de cumprir a lei, seja isso verdade ou não.

E, acima de tudo, esta demora – suavizemos assim a aberração – foi possível porque estamos a falar de operárias, muitas delas de escolaridade e salários mínimos e diversos outros mínimos associados. Porque se fossem médicas ou professoras universitárias ou jornalistas a quem um acordo colectivo de trabalho lhes fixasse um salário abaixo do salário dos seus colegas do sexo masculino, apenas pelo facto de serem mulheres, duvido muito que essa situação durasse até 2017... Mas, como estamos a falar de fazer sapatos, actividade que parece funcionar no nosso imaginário colectivo como o negócio português de supercondutores ou de biotecnologia (diz que fazer sapatos incorpora inovação, design e todas as palavras bonitas do nosso tempo), tudo bem. Afinal, o vale do Ave não é o vale da Ave, certo?

E se Nosso Senhor quisesse que as mulheres ganhassem o mesmo que os homens, pelo mesmo trabalho, teria certamente iluminado um qualquer escriba bíblico nesse sentido, nem que fosse pela mera aposição de um “emoticon” divino a fechar a frase...

Só posso dar um conselho final às nossas novas milionárias, as operárias da indústria do calçado (afinal terão um aumento médio de 3% nos seus salários mínimos): exigir em tribunal as remunerações ilegalmente retidas pelos seus empregadores nos últimos anos, mesmo que isso implique que estes tenham de vender o Ferrari. Afinal, qualquer discriminação salarial com base no género já era proibida há muito tempo, independentemente do que um acordo colectivo pudesse dizer. Mas antes, calcem os saltos altos que constroem e dêem uma volta pela fábrica. Como se prevenia no Velho Testamento, “afasta os teus olhos de uma mulher elegante, e não olhes com insistência para a formosura alheia; muitos pereceram por causa da beleza feminina”. Ou, pelo menos, perderam os Ferraris.

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