Dono da Barraqueiro ameaça abandonar passes sociais nos transportes

Humberto Pedrosa exige solução ao Governo até final deste mês. Compensações pagas pelo Estado aos privados voltam a gerar controvérsia, a começar pelos pareceres contraditórios das Finanças.

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Barraqueiro defende que já perdoou 60 milhões ao Estado RUI GAUDÊNCIO

O dono da Barraqueiro, Humberto Pedrosa, ameaça abandonar já no final deste mês o sistema de passes sociais nos transportes, deixando de praticar este tarifário com desconto na Rodoviária de Lisboa. O empresário exige uma solução urgente ao Governo e à Área Metropolitana de Lisboa (AML) e, caso não obtenha resposta, admite processar o Estado pelos 18 milhões de euros que alega serem devidos à empresa para a compensar pela diferença entre a receita da venda destes passes e os custos de transportar os passageiros nos últimos três anos.

Há quase duas décadas que estas compensações financeiras geram controvérsia, mas agora a discórdia subiu de tom: de um lado estão os operadores privados como a Rodoviária Lisboa; do outro está a AML, que, com a extinção da Autoridade Metropolitana de Transportes de Lisboa em 2015,  ficou com competências ao nível do transporte público de passageiros. Depois de várias tentativas para encontrar um modelo indemnizatório justo, todos concordam que as regras actualmente em vigor devem ser alteradas, mas diferem no caminho a seguir. E as respostas do executivo de António Costa tardam em chegar. “Parece haver uma preocupação deste Governo em resolver a questão, mas na AML não parece haver essa vontade e já não percebo quem manda”, diz Pedrosa.

Face à ausência de explicações, o empresário garante que está “a encarar a saída” dos passes sociais “até ao final de Outubro”. O impacto da decisão será grande, tendo em conta que na Rodoviária de Lisboa cerca de 65 mil pessoas utilizam passes deste tipo mensalmente (incluindo os intermodais, que são apoiados pelo Estado, e os combinados). Mas a Barraqueiro pondera ir mais longe. “Só tenho uma solução: recorrer aos tribunais com um processo contra o Estado para recuperar as verbas de 2014, 2015 e 2016”, acrescenta.

"A corda partiu", diz Pedrosa

Para Humberto Pedrosa, que no ano passado juntou ao conglomerado no sector dos transportes terrestres o investimento na TAP (detém 61% em conjunto com o norte-americano David Neeleman), “a corda agora partiu”. Além das verbas em atraso relativas àqueles três anos, o grupo depara-se com um reavivar das acusações de pagamentos indevidos. À semelhança do que tinha acontecido há um ano, pela voz da Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (Fectrans), o Expresso voltou a referir-se, em meados de Outubro, a compensações de cerca de 19 milhões de euros transferidas em excesso para a Rodoviária de Lisboa e para a Transportes Sul do Tejo em 2012 e 2013, com base em estimativas da AML.

O empresário rejeita as acusações. “Em 2012 e 2013, a Rodoviária de Lisboa não recebeu compensações a mais. Aliás, se formos fazer as contas ao que deveríamos ter recebido entre 2004 e 2014, perdoámos ao Estado 60 milhões de euros, além de não termos recebido absolutamente nada entre 1995 [ano em que a empresa foi privatizada] e 2004”, afirma.

As resoluções do Conselho de Ministros que fixaram os montantes das compensações para 2012 e 2013 mostram que a Rodoviária de Lisboa e a Transportes Sul do Tejo receberam, respectivamente, 6,6 milhões e 2,8 milhões de euros nos dois anos. Confrontado pelo PÚBLICO sobre a diferença entre a estimativa de pagamentos indevidos e os valores efectivamente pagos, o primeiro secretário executivo da AML explicou que o alegado desvio de 19 milhões “não é calculado dentro da AML, está registado em relatórios de várias entidades”. Demétrio Alves referiu, porém, “não estar em condições de o qualificar ou não de perdão” às duas empresas.

Os atrasos nos pagamentos a partir de 2014 e as acusações a que os operadores privados têm sido sujeitos relativamente a 2012 e 2013 convergem num despacho do Verão do ano passado, com a assinatura dos ex-secretários de Estado do Tesouro e das Infra-estruturas e Transportes do primeiro Governo de Pedro Passos Coelho. Nesse despacho, foi estabelecido o novo método de cálculo de repartição de receitas e de atribuição de compensações financeiras às empresas de transportes, públicas e privadas, de 2014 em diante. E, em simultâneo, revogou-se um despacho aprovado dois anos antes também pelo executivo PSD/CDS que obrigava a que as indemnizações pagas em 2012 e 2013 fossem revistas, passando a ter em conta os dados reais da bilhética e não um inquérito à mobilidade feito em 2007.

O debate aceso em redor deste despacho regressou agora porque o actual secretário de Estado Adjunto, do Tesouro e Finanças, Ricardo Mourinho Félix, homologou no final de Setembro um parecer da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) que levanta dúvidas sobre o impacto das novas regras nos cofres públicos, sugerindo que seja alterado. Ora este parecer, que foi pedido pela AML, contraria um outro, solicitado pela ex-secretária de Estado do Tesouro de Passos Coelho, antes de avançar com o despacho em Agosto de 2015. Ambos são assinados pelo mesmo chefe de equipa da IGF.

Um despacho em vias de alteração

A hipótese de revogar o despacho esteve logo em cima da mesa poucos dias depois de ter sido publicado. Esse passo só não foi dado porque, mesmo após fortes críticas de Demétrio Alves, o presidente do Conselho Metropolitano da AML, Basílio Horta, escreveu ao ex-secretário de Estado das Infra-estruturas e dos Transportes a garantir que não existia um “conflito institucional” sobre o tema. “Não se solicita a revogação do despacho nº 8946-A/2015, de 10 de Agosto”, lê-se na missiva enviada a Sérgio Monteiro, a que o PÚBLICO teve acesso.

O mais provável é que o despacho venha a ser alterado, tanto por vontade da AML, como dos operadores privados. No caso da Rodoviária de Lisboa, Humberto Pedrosa explicou que, se em 2012 e 2013, as contas tivessem sido feitas com base na bilhética, a empresa teria saído favorecida. “Os dados revelam que transporta mais 1,7 milhões de passageiros do que diz o inquérito de 2007”, diz o empresário. Este inquérito sempre foi muito contestado por ter sido feito em parte durante o período de férias. Já o primeiro secretário executivo da AML considera que o último parecer da IGF veio confirmar situações “desequilibradas” entre operadores. Demétrio Alves referiu desconhecer o primeiro parecer dado pelas Finanças.

O problema agora será consensualizar o caminho a seguir, porque a AML entende que deve ser colocado um limite ao número de viagens a compensar, independentemente das viagens que sejam efectivamente realizadas. Algo que os operadores contestam. Demétrio Alves não quis adiantar qual será a solução, explicando apenas que “têm vindo a ser feitos trabalhos nos últimos meses para alterar o despacho”. Do lado do Governo, o gabinete do secretário de Estado Adjunto e do Ambiente confirmou apenas que recebeu o último parecer da IGF, que foi aliás remetido por Mourinho Félix. Mas comprometeu-se apenas com a intenção de “promover um transporte público de qualidade, o que passa por uma cada vez maior integração modal, inclusive ao nível tarifário”, assegurando que “está já a analisar o teor do despacho” de Agosto de 2015 e “respectivas implicações, em articulação com as autoridades de transporte e respectivos operadores”. 

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