O fim do mundo e o renascer da humanidade

Sobre O Outro Lado da Esperança, de Aki Kaurismäki

Foto
DR

O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

O mar transporta-nos para mundos sem fim, para os universos mais díspares, para as realidades mais distantes. O mar traz-nos o bom e o mau, o herói e o vilão, a vida e a morte. O porto é o lugar de chegadas, de partidas: um não-lugar, de constante impermanência, onde ocorrem os cruzamentos que o mar possibilita.

Este mar traz-nos Khaled, um refugiado de Aleppo que emerge como fénix renascida das cinzas da destruição que marca a actualidade. Este mar traz-nos o mote para O Outro Lado da Esperança (2017), o mais recente filme de Aki Kaurismäki, e o novo registo de uma – há muito consolidada – continuidade temática e formal do realizador finlandês. Segundo filme de uma trilogia de retratos de cidades portuárias, é um registo de encontros improváveis de vidas, histórias e culturas, num quadro de certeza, de rigidez, de (absurdo e geométrico) planeamento, de estética clássica, de burocracia das vidas (controladamente) (ir)reais.

A cidade apresentada por Kaurismäki é estruturada, rígida, e os seus habitantes agem enquanto personagens de um teatro cómico de coreografia limitada e forçada, em contraste com a realidade improvável da vida. Uma cidade onde as culturas se cruzam; onde, de uma forma comicamente falhada, o finlandês tenta ser japonês, onde o americano tenta ser finlandês. Mas onde também se distanciam – de uma forma trágica, o sírio não pode ser finlandês. Kaurismäki é um cineasta marcadamente global e multicultural e o seu mundo cinematográfico explora precisamente as possibilidades que advêm da aceitação e incorporação das diversas influências que recebe. Só que, mais do que multicultural, este é um registo do outro lado da esperança.

Mas de onde vem este outro lado da esperança? O – eternamente temido – fim do mundo chegou: a desumanidade reina nos mundos mais longínquos, mas também no nosso porto que Khaled tanto procura e que tanto acredita ser seguro. Como sentir a tragédia do fim, no entanto, neste palco da mais coordenada e coreografada perfeição, onde a noção da realidade daquilo que está para além do mar parece não existir?

Quando o relógio marca as 13h47, num acto de selecção entre o reino dos céus e a condenação ao inferno, Khaled é sentenciado a retornar ao fogo que transformou o seu mundo em cinzas e do qual poderá não voltar a renascer. A rigidez e a perfeição do sistema resultam na mais trágica – e absurda – resolução, e a salvação parece estar mais distante do que nunca. Mas, após a condenação, após o fim anunciado, após a morte prevista, a salvação surge, e a falha transforma-se no mote para a reflexão e a observação do outro lado da esperança: a beleza que transparece da certeza de que, mesmo no fim do mundo, o mais pequeno gesto de humanidade tem o poder de salvar uma vida e, de alguma forma, o mundo.

Os pequenos gestos – sempre tão visualmente explorados por Bresson e Kaurismäki – advêm das quebras da irreal perfeição do sistema, da absurda rigidez e formalidade dos povos e dos indivíduos mais insensivelmente mecanizados e coreografados. A partir destes gestos, das falhas perfeitas da imperfeita sociedade, temos a possibilidade de vislumbrar a vida depois do fim do mundo, do fim da esperança: a humanidade no seu esplendor de (im)perfeição, num mar de contínuas aproximações e contínuos afastamentos, que encontra no porto o seu ponto de união – mesmo que breve e impermanente.

Texto editado por Jorge Mourinha

Sugerir correcção
Comentar