E agora, para algo completamente diferente: Bob Dylan é Nobel da Literatura

Grande surpresa no anúncio desta quinta-feira. O músico, o primeiro a receber o Nobel da Literatura, foi distinguido "por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana".

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Bob Dylan em 1963 AP Photo
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Bob Dylan nasceu no Minnesota em 1941 como Robert Allen Zimmerman AFP PHOTO/HO/XM Satellite Radi
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Concerto em 1998 no Royal Albert Hall Barry Feinstein/Courtesy Columbia Records Legacy REUTERS
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Em 1990, Bob Dylan foi condecorado pela Ordem de Artes e Letras francesa AP Photo/ Lionel Cironeau/File
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Em Maio de 2012, o presidente americano Barack Obama condecorou o músico com a Medalha da Liberdade AFP PHOTO / MANDEL NGAN
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Bob Dylan em 1984 durante um concerto em Sceaux, França AFP PHOTO / Bruno DECREUSE
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Papa João Paulo II com Bob Dylan em 1997, em Bolonha, Itália Photo by Vatican REUTERS
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Dylan interpreta o tema "Maggie's Farm" na 53ª edição dos Grammy em Los Angeles, 2011 REUTERS/Lucy Nicholson/File Photo
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Concerto de Bob Dylan em 2012 REUTERS/Ki Price/File Photo
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Livros de Bob Dylan expostos na Academia Sueca, em Estocolmo. "Ele pode ser lido e deve ser lido", resumiu a secretária da Academia AFP PHOTO / JONATHAN NACKSTRAND
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AFP PHOTO/FILES/Torsten BLACKWOOD
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Kevin Winter/Getty Images for AFI/AFP

O Prémio Nobel da Literatura foi esta quinta-feira atribuído em Estocolmo a Bob Dylan. O músico norte-americano tornou-se o 113.º escritor a receber o mais cobiçado prémio literário do planeta. "Por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana", foi assim que a Academia Sueca justificou a entrega do Nobel ao cantor norte-americano.

É o primeiro norte-americano a ganhar o prémio desde Toni Morrison, em 1993. Mais relevante, porém, é o facto de, depois de vários anos em que o seu nome foi avançado como possível vencedor, a atribuição do Nobel a Dylan servir como legimitação literária da canção popular, de que o cantor de Blowing in the wind é um dos maiores representantes. Não por acaso, Sara Danius, Secretária Permanente da Academia Sueca, reconhecendo que a distinção de alguém cujo ofício é o das canções pode ser controverso, manifestou a esperança de a Academia não ser criticada pela escolha. 

Vemo-lo, no início dos anos 1960, assim o mostram as fotos, no minúsculo apartamento sem aquecimento e praticamente sem mobília que partilhava com a namorada em Nova Iorque. Enfrenta a câmara enquanto as mãos continuam pousadas na máquina de escrever, utensílio indispensável ao seu ofício. Vemo-lo uns anos mais tarde, em 1965, enquanto o fumo dos cigarros preenche o quarto de hotel londrino, carregando as teclas da máquina de escrever para passar ao papel uma ideia. É observado de perto por Joan Baez, que, em Don’t Look Back, documentário estreado em 1967, se junta ao homem da máquina de escrever nos palcos ingleses em que aquele mostrava a sua música.

O músico sentado à máquina de escrever 

O homem da máquina de escrever tinha sempre perto de si, para além dela, uma guitarra ou um piano. O homem da máquina de escrever, hoje com 75 anos, esteve nesta quinta à noite no The Chelsea at The Cosmopolitan of Las Vegas e estará esta noite no Indio Polo Club Desert Trip, cumprindo mais duas datas da sua “Never Ending Tour” [“Digressão Interminável”], iniciada em meados dos anos 1980. A partir de agora, esse homem da máquina de escrever chamado Bob Dylan carrega consigo um novo peso. Reconhecimento inesperado: o bardo da canção americana é desde esta quinta-feira um Prémio Nobel da Literatura, o 113.º a receber o mais cobiçado prémio literário do planeta. O anúncio chegou às 12h e a Academia Sueca justificou a distinção com “as novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana” criadas por Dylan. Temos então este facto curioso: o prémio Nobel da Literatura que todos conhecem e cuja obra todos podem discutir com propriedade é, também, “provavelmente a escolha mais radical” na história dos prémios, como referiu o New York Times.

Se, no ano passado, a atribuição do Nobel a Svetlana Alexievich, jornalista bielorrusa cuja obra literária é criada a partir de extensas entrevistas a centenas de fontes, já causara discussão, seria inevitável que a atribuição do prémio a Bob Dylan, cujo ofício é e sempre foi a música, apesar do trabalho paralelo e ocasional enquanto pintor, actor, argumentista ou escritor, provocasse furor ainda mais intenso. “Se olharmos para o passado, para há cerca de 2500 anos, descobrimos Homero ou Safo, que escreviam textos poéticos que era suposto serem ouvidos. Era suposto que fossem interpretados, a maior parte das vezes com acompanhamento de instrumentos, e o mesmo sucede com Bob Dylan”, afirmou Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca. “Ainda lemos Homero e Safo e apreciamo-los. O mesmo acontece com Bob Dylan, que pode ser lido e deve ser lido. É um grande poeta na tradição inglesa, na grande tradição poética inglesa.”

Tecnicamente, esta não é a primeira vez que um músico é distinguido com o Nobel da Literatura. Em 1913, o indiano Rabindranath Tagore recebeu a distinção. Tagore, que, curiosamente, morreu no ano do nascimento de Dylan, foi não só um escritor destacado na literatura indiana, enquanto romancista, poeta e dramaturgo, mas também um pintor de reconhecido mérito e um compositor que assinou mais de duas mil canções nos seus 80 anos de vida. Bob Dylan, porém, é o primeiro Nobel da Literatura cujo ofício se centra num campo exterior ao literário. Isso explicará não só a surpresa com que o anúncio do prémio foi recebido, mas também a polémica que se desencadeou entre os que defendem e os que questionam a justiça da distinção.

Poucos terão sido mais cáusticos que o romancista escocês Irvine Welsh. "Sou fã de Dylan, mas isto é um prémio nostálgico mal amanhado, arrancado das próstatas rançosas de hippies senis e gaguejantes", escreveu na sua conta de Twitter. Salman Rushdie não podia estar mais em desacordo. Igualmente no Twitter, defendeu o prémio em três frases: "De Orfeu a Faiz, canção e poesia têm estado intimamente ligados. Dylan é o brilhante herdeiro da tradição dos bardos. Uma grande escolha". Entre uma posição e outra, não falta naturalmente o humor. O escritor americano Jason Pinter, por exemplo, tem uma sugestão a fazer: "Se o Bob Dylan pode ganhar o Prémio Nobel da Literatura, então julgo que Stephen King dever ser eleito para o Rock'n'Roll Hall of Fame".

O nome a que chegaram os dezoito membros da Academia Sueca foi, porém, consensual. E, apesar de inusitado na história do Nobel, estará de acordo com os critérios vagos, considera a Academia, deixados em testamento por Alfred Nobel para sua atribuição. "Na verdade, a história do prémio literário surge como uma série de tentativas de interpretar um testamento impreciso na sua formulação", lê-se no site da Academia. Na nota biográfica emitida pela instituição, acentua-se que as letras de Dylan "têm sido continuamente publicadas em novas edições, sob o título Lyrics. Enquanto artista, é extraordinariamente versátil; tendo estado activo enquanto pintor, actor e guionista". A nota despede-se apontando que "a sua influência na música contemporânea é profunda, e ele é alvo de um fluxo contínuo de literatura secundária". 

The times they are a-changing, perhaps” (“Talvez os tempos estejam a mudar”), comentou Sara Danius, referindo uma das canções mais célebres do nobelizado. E estarão, de facto. Num certo sentido, a escolha de Dylan reflecte um processo moderno, agudizado nas últimas décadas: o derrube das fronteiras entre categorias artísticas outrora estanques e a progressiva diluição das hierarquias que separavam as artes populares e eruditas.

"A poesia pode criar a sua própria forma"

Ontem, não faltaram vozes a defender a escrita de Dylan como merecedora do Nobel. Defendeu-o Barack Obama: “Parabéns para um dos meus poetas favoritos, Bob Dylan, por um Nobel merecido”, escreveu o presidente americano na sua conta de Spotify. E Joyce Carol Oates, escritora americana que era uma das favoritas para este ano, alinhou também com os agradados com a distinção, escrevendo no Twitter: “Escolha inspirada e original. A sua música e letras assombradas sempre pareceram literárias, no sentido mais profundo do termo.” Essa qualidade literária, de resto, não é um reconhecimento recente. Em 1964, a New Yorker publicou um perfil do músico em que surge citada Joan Baez. “A maioria das canções de ‘protesto’ sobre a bomba, a discriminação racial e o conformismo são estúpidas. Não têm beleza. Mas as canções do Bobby são poderosas como poesia e são poderosas enquanto música”, elogiou aquela que era à época considerada a rainha da folk.

No mesmo artigo, Dylan, 23 anos à época, confessa-se frustrado com as limitações impostas pelo formato canção. “Uma canção tem que ter um certo formato para encaixar na música. Podes dobrar as palavras e a métrica, mas ainda assim têm que encaixar de alguma forma. Estou a sentir-me mais livre nas canções que componho, mas ainda me sinto confinado. É por isso que escrevo muita poesia — se essa é a palavra certa. A poesia pode criar a sua própria forma.” A justificação para a atribuição do prémio Nobel da Literatura está, de certa forma, contida nestas declarações de há cinco décadas. Dylan moldou a poesia às letras de uma canção não até que uma fosse inseparável das outras, marca dos grandes compositores, mas, feito raro, de forma a que pudessem também sobreviver desligadas do seu contexto musical. O homem dobrado sobre a máquina de escrever, que tem o ofício de cantautor, foi vendo a sua música e letras alvos de investigação universitária mundo fora, assistiu à publicação de um livro, assinado Greil Marcus, o grande escritor e jornalista musical americano, inteiramente dedicado a Like a rolling stone, uma das suas canções mais emblemáticas.

Se descontarmos os livros de arte, o essencial da bibliografia de Bob Dylan está publicada em Portugal. A Relógio D’Água publicou em dois volumes, respectivamente editados em 2006 e 2008, as suas Canções: 1962-2001, em tradução de Pedro Serrano e Angelina Barbosa – os dois tomos perfazem mais de 1400 páginas – e a Ulisseia editou em 2005, com tradução de Bárbara Pinto Coelho, Crónicas, que constitui o primeiro volume da sua autobiografia e foi originalmente lançado pela Simon & Schuster em 2004. O projecto inicial previa três volumes, mas o músico não se tem apressado: a última notícia em primeira mão sobre o andamento da obra é uma entrevista de Dylan à Rolling Stone, em 2012, na qual  este diz que está “a trabalhar” no segundo tomo.

Na extinta editora Quasi, de V. N. de Famalicão, que foi co-gerida por Jorge Reis-Sá e Valter Hugo Mãe, saiu ainda o primeiro livro de Bob Dylan, Tarântula, traduzido pelo poeta Vasco Gato. Escrito numa prosa poética de carácter fortemente experimental, provavelmente influenciada por autores da beat generation, como Jack Kerouac, William S. Burroughs ou Allen Ginsberg, Tarântula data dos anos 1965 e 1966 e é contemporâneo de discos como Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited, ambos de 1965. Uma primeira edição de 50 exemplares, impressa em páginas A4, saiu numa editora marginal de São Francisco, e seguiram-se várias edições piratas até a Macmillan lançar, em 1971, aquela que é considerada a primeira edição oficial, recebida pela crítica literária com reacções de escárnio mais ou menos generalizadas. 

Guardião do cancioneiro americano

Nascido em Duluth, no Minesota, a 24 de Maio de 1941, Bob Dylan foi uma figura fulcral na revolução musical e cultural da década de 1960. Partindo da tradição folk, blues e country americanas, mas transportando-a para uma nova era de convulsão política e agitação social, levou a palavra, como nunca antes, para o centro da criação pop. Assinou 37 álbuns desde a estreia homónima em 1962. Fallen Angels, editado em 2016, é o último até ao momento.

Inicialmente próximo da tradição da canção de protesto de Woody Guthrie, algo aprimorado nos clubes folk extremamente politizados de Greenwich Village, Nova Iorque, Bob Dylan recusou ser preso no altar de "voz de uma geração" a que foi erguido. A sua música e as suas letras, inicialmente primorosos retratos sociais e denúncia política arrancados à história das canções da velha América e à realidade nas ruas que o envolviam, foram ganhando uma nova dimensão à medida que se virava para si próprio e procurava uma expressão individual em que a liberdade poética surgia torrencial, surreal, revolucionária — exemplo magistral disso é a sua trilogia clássica da década de 1960, formada por Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966). O final da década traria nova inflexão de rumo, com o mergulho nas raízes e nas mitologias da música americana selado nas famosas Basement Tapes gravadas com a The Band em 1967 e editadas em 1975 ou, simbolicamente, no dueto com Johnny Cash, em Girl from the north country, que abre Nashville Skyline (1969).

Hoje, vemo-lo como grande guardião do cancioneiro americano e, de certo modo, de uma ideia perene de América que se julga ameaçada e distorcida. Não por acaso, são de versões os seus dois álbuns mais recentes. Shadows in the Night (2015) é dedicado inteiramente a canções interpretadas por Frank Sinatra e Fallen Angels a compositores como Johnny Mercer ou Sammy Cahn.

Ao longo da sua carreira escreveu mais de cinco centenas de canções. E a Academia Sueca, depois da surpresa provocada pelo anúncio do Nobel da Literatura 2016, está esperançada em nova surpresa. A Reuters perguntou a Per Wastberg, membro da Academia, se o discurso proferido pelo laureado quando da entrega do prémio poderá este ano ser trocado por um concerto. Resposta rápida: “Esperemos que sim.” O Nobel da Literatura canta.

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