Esta banda é a vida das Hinds

As Hinds são quatro raparigas de Madrid. São rock'n'roll lo-fi e pop imaculada e são desarmantes na verdade que emanam. Leave me Alone é apresentado em Lisboa e no Porto.

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Dançam, passeiam e partilham garrafas de cerveja, sorrisos omnipresentes, enquanto cantam na rua de uma qualquer cidade (Madrid, neste caso). Vemos uma amiga cozinhar, um amigo enfiado num saco-cama o oferecer os auscultadores para revelar a melhor música de sempre daquela semana. Vemo-las no estúdio a criar a música que cristaliza tudo isto em canção.

Bamboo: canção de vozes trocadas em dueto vivo, acompanhadas de guitarra tremeluzente e ritmo contido. Uma pérola pop pedindo acompanhamento comunal, tal a discreta e reconfortante luminosidade das melodias. O vídeo foi gravado quando Carlotta Cosials e Ana Perrote ainda se chamavam Deers. Uma ameaça de processo judicial depois, transformaram-se em Hinds e até faz mais sentido – “deer” é veado, “hind” é corça, elas são um quarteto formado por quatro raparigas. Não foi a única coisa que mudou.

Leave me Alone, o álbum de estreia, editado a semana passada e que será apresentado em Portugal esta sexta, em Lisboa (Musicbox, 8 euros, primeira parte de Alek Rein), e sábado, no Porto (Hard Club, 8 euros, primeira parte d’Os Modernos), saiu há menos de um mês e sente-se o burburinho. Bobby Gillespie, dos Primal Scream, poupava nos elogios quando as Hinds ainda eram Deers. Patrick Carney, dos Black Keys, também é fã e os heróis indie Pastels ergueram o polegar em aprovação. Os amigos do rock’n’roll madrileno, como os The Parrots, que lhes produziram a estreia gravada em Cadiz, estão certamente orgulhosos das benjamins da cena e, entre a centena de concertos que deram, de Espanha para o mundo, com passagens por Paredes de Coura, o ano passado, ou digressões no Extremo Oriente, contam-se viagens com os agora companheirões de folia Black Lips, heróis garage-rock em som e atitude, ou a abertura de um concerto dos Strokes em Hyde Park – “yeeeeeaaaaaah!”: Carlotta Cosials não contém o entusiasmo perante a memória e a razão que o justifica, aliada à sinceridade com que a guitarrista e vocalista o manifesta, explicam porque aconteceu isto a quatro de raparigas de Madrid (a Carlotta e Ana, as fundadoras, juntam-se a baixista Ade Martin e a baterista holandesa Amber Grimbergen).

“Imagina que criaste qualquer coisa com as tuas próprias mãos, que criaste tu mesmo tudo o que ali está, e que depois tens a oportunidade de o partilhar todas as noites numa cidade diferente do mundo. Trabalhámos neste álbum durante um ano e meio e, de repente, ele está cá fora. Parece, de certa forma, o princípio do fim. Mas também que agora é que tudo começou”, diz Carlotta desde Barcelona, a um dia do regresso a Madrid. A vida mudou rápido para as Hinds, todas elas no início dos vintes, mas a nova vida não parece ter provocado quaisquer efeitos secundários. O vídeo de Bamboo diz-nos tudo o que precisamos de saber.

A mais velha história do rock
Leave me Alone não tem quaisquer segredos. É a mais velha história do rock. Adolescentes, como todos os adolescentes, marcam o correr dos dias com a música que lhes chega aos ouvidos. Depois começam a ver concertos dos grandes vindos de fora e do pessoal que está ali mesmo ao lado. Ouvindo, vendo e conhecendo, hão-de questionar-se. “E se?”. Se subissem eles mesmos ao palco? Não é por acaso que Carlotta se sentiu mais nervosa ao dar os pequenos concertos em bares de Madrid do início do que quando, como agora, se vê perante centenas, milhares, dezenas de milhares. “Tudo o que sabemos deve-se a Madrid, aos amigos que temos em Madrid, ao grupo de pessoas que respeitamos em Madrid”, diz. “Quando começámos a banda senti-me muito, muito nervosa. Os nossos amigos eram também os nossos mentores e queríamos muito que gostassem da nossa música”. Gostaram, claro. Como se torna óbvio ao ouvir Leave Me Alone, o que havia para não gostar?

Em Março de 2014 as Hinds ainda Deers carregaram duas canções, Bamboo e Trippy gum, no Bandcamp. Em Junho tocam pela primeira vez fora de Espanha, em Londres. No mês seguinte, lançam o primeiro single. Sucedem-se digressões, primeiras partes de Libertines, Vaccines ou Black Lips. Elogiam-lhes a genuinidade dos concertos, a graça nas entrevistas, a total ausência de afectação quando definem a sua atitude como “nuestras mierdas, nuestras reglas” (“as nossas merdas, as nossas regras”). O novo álbum não se chama Leave me Alone por acaso. “Muita gente começou a dizer-nos o que devíamos fazer e como devíamos agir, como se soubessem o que é tu deves fazer com a tua vida. Mas nós sabemos. Ou melhor, decidimos confiar em nós”. Sábia decisão.

Leave me Alone é uma colecção de canções no espectro certo do lo-fi, no equilíbrio certeiro entre melodia pop e ataque rock’n’roll. “Os instrumentos tinham que soar ao que são. Na música tens actualmente demasiadas opções quando se faz uma super canção pop, uma super balada ou o que seja. Nos quisemos que os nossos instrumentos soassem exactamente ao que somos. Tudo simples, sem fingir nada. Nada de violinos ou theremin. Isto é o que temos. Não há mistério ou sofisticação inventadas. Que se fodam os violinos”.

Ouvimo-lo, nas suas histórias de amores e irritações, de sms trocadas em estados etílicos pouco recomendáveis e de declarações inesperadas – "I could be your baby, but I’ll be your man”, de I’ll be your man, é muito bem sacada , e é como se, nestas canções que encontram lar em ecos garage de vozes distorcidas e guitarras estridentes, no apelo pop dos punks que, nos anos 1980, cederam ao coração e inventaram o indie, numa melancolia que é inevitável surgir porque festa é festa mas não se pode viver em festa eterna, as víssemos exactamente como são. A música entusiasma pela energia, pelas vozes partilhando melodias e protagonismo, pela vida que delas emana. “Fazemos a música que queremos ouvir quando estamos no autocarro a caminho de casa ou no fim de uma festa às 6 da manhã. Não fazemos música enquanto compositoras, fazemos música enquanto ouvintes”.

É por isso que, quando o tema muda para os Strokes, ouvimos aquele “yeeeaaaah” tão prolongado. Carlotta lembra-se de quando os ouviu pela primeira vez. “Era adolescente e estava no único pub das redondezas que passa rock’n’roll ou indie. Na hora de fechar tocaram a ‘You only live once’, do terceiro álbum. Eu estava aos beijos com um rapaz, tudo perfeito”. E depois ouvem-se os nova-iorquinos e ela a correr para saber que banda era aquela que nunca ouvira e a não descansar até descobrir. “A música pode tornar a tua vida melhor e os Strokes mudaram a minha maneira de pensar de tantas formas”. Neste momento, algo muda na voz sempre feliz de Carlotta. “Adorava que esta noite estivesse um casal de miúdos agarrados num bar de Lisboa, que a última canção fosse das Hinds e que eles perguntassem ‘o que é isto?’ como eu perguntei”. A imagem deixa-a comovida e a voz da vocalista da banda descrita como festa rockn’roll 24 horas por dia, soluça levemente.

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Prometemos-lhe que percorreremos bares da cidade às sextas e sábados com o disco das Hinds debaixo do braço, à espera do momento certo para fazer delas a despedida da noite. Iremos fazê-lo com gosto. Porque não há como resistir a esta tão transparente e tão viva sinceridade, quanda dela resultam canções assim.

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