Adeus William Trevor, autor de toda a humanidade e de cada ser humano

Ler William Trevor – hilariante, melancólico, impiedoso e comovente – é um dos grandes prazeres da vida. Felizmente deixou-nos muita coisa para ler e reler, com muito pouca repetição.

William Trevor que morreu na segunda-feira era um escritor generoso.

Dava-nos vidas e aldeias e cidades e pessoas num só conto. Mesmo os contos menores são pequenas obras-primas de observação da humanidade, de registos de vergonhas, ambições e vontades.

A New Yorker – também generosamente – ofereceu-nos a leitura online de todos os contos dele que a revista publicou, quase 40, desde 1977 a 2013. Todos juntos, no entanto, não constituem uma boa antologia.

Muito melhores são as antologias escolhidas pelo próprio William Trevor.

Aconselho a imprimi-los um de cada vez, em bom papel. São bons de mais para ler depressa. E ganham em ser lidos um de cada vez. Apesar de serem sempre mais curtos do que desejaríamos, perduram nas nossas imaginações.

Aos contos maiores, que também passam num instante, ele chamou romances. Há contos dele que são grandes romances e romances dele que são pequenos contos. Com William Trevor é só uma questão de comprimento. Fora uma ou outra excepção o comprimento é sempre o mesmo: o correcto. O próprio autor dizia que havia sempre uma maneira de decidir quanto é que uma obra de ficção tinha chegado ao fim: era “when you’re getting bored stiff with it” (quando estão a tornar-se chatos como a potassa).

Contos ou romances estão tão bem escritos que desaparece a arquitectura da escrita: aproximam-nos das personagens e das histórias (porque são sempre histórias com princípio, meio e fim) como se as conhecêssemos. Não vale a pena falar da Irlanda e dos irlandeses, da Inglaterra e dos ingleses, das aldeias e das cidades de ambos os países. É um erro e um desperdício reduzir William Trevor às circunstâncias meramente geográficas e culturais. É um dos poucos grandes escritores de língua inglesa dos últimos 100 anos.

Diz-se abusivamente de muitos escritores e de muitas escritoras que são tchekhovianos. A ficção de William Trevor é verdadeiramente tchekhoviana. Mas é-o, sobretudo, naquilo que escreveu na segunda metade da vida. Tchekhov morreu com 44 anos. William Trevor morreu com 88. A obra dele pode ser vista como uma continuação da obra de Tchekhov se este tivesse 45, 50, 60, 70, 80 ou 85 anos.

Ler William Trevor – hilariante, melancólico, impiedoso e comovente – é um dos grandes prazeres da vida. Felizmente deixou-nos muita coisa para ler e reler, com muito pouca repetição.

Se nunca leu William Trevor (que inveja!) aconselho a começar por The Collected Stories de 2003 e depois continuar com as antologias individuais, conforme a proveniência do maior número de contos de que mais tenha gostado.

Uma das recompensas escondidas de ler William Trevor é saber que se pode relê-lo quase imediatamente, com mais calma, logo que se tenha saciado a curiosidade. Outra é poder ler sem qualquer esforço, ficando-se logo absorto pelas histórias, tal é a fluidez cristalina da escrita. Muitos autores morrem com uma obra interrompida. De William Trevor pode-se dizer, com o maior dos elogios, que morreu com uma obra completa.

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