As vacas já não voam

A inépcia da AIMA pode não ser um problema para Pena Pires, mas é-o para muitos imigrantes que deambulam pelas ruas de Porto e Lisboa sem casa, emprego ou perspetivas de ver a situação regularizada.

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Foi com perplexidade que li, neste jornal, o artigo de Rui Pena Pires com o curioso título Caiu uma vaca roxa no quintal da minha vizinha. Nesse artigo sou acusado de incoerência (para dizer o mínimo) por, na mesma declaração prévia à ordem dos trabalhos da Assembleia Municipal do Porto, ter condenado os ataques a imigrantes na cidade e, em seguida, ter verberado a inoperância da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) para, entre outras coisas, emitir autorizações de residência.

Como escreveu, também neste jornal, João Miguel Tavares, “há cabeças que explodem ao admitirem duas coisas em simultâneo”, o que leva o colunista a interrogar-se: “Qual é o problema de afirmar, em simultâneo, que sim, foi um ataque xenófobo e racista absolutamente inaceitável, e que sim, existe neste momento um problema de imigração descontrolada em Portugal?” Para Rui Pena Pires, pelos vistos, há problema. O fenómeno da imigração está, para este sociólogo, envolto em tabus e interditos, relativamente aos quais não é de bom-tom falar e muito menos procurar compreender de forma integral e integrada.

No seu artigo, Rui Pena Pires admite que eu considerei a violência sobre os imigrantes um “crime hediondo”. Mas, muito convenientemente e com flagrante desonestidade intelectual, ignorou tudo o resto que eu disse sobre o dramático ataque e a linha de raciocínio que expus na declaração. Creio, aliás, que não se deu ao trabalho de ler ou ouvir a minha declaração na íntegra, ficando-se pelos soundbites que saíram na comunicação social. Ora, como está registado no Youtube, para além de repudiar o ocorrido, afirmei que se tratou de “um crime de ódio, que não pode ser relativizado, a qualquer título”, sendo “inaceitável qualquer tentativa de [o] justificar ou explicar”.

Claro que citar estas frases estragava a narrativa de Rui Pena Pires no artigo. Uma narrativa que, mais do que me apoucar com insinuações de populismo e proximidade ao Chega, procura alijar de responsabilidades o anterior Governo do seu partido e o seu correligionário Eduardo Cabrita, o ex-ministro da Administração Interna, pelo precipitado e irresponsável desmantelamento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Na mesma declaração acrescentei que, mesmo não havendo correlação direta entre a onda de assaltos e agressões na zona do Campo 24 de Agosto, aparentemente perpetrados por magrebinos, e o ataque a imigrantes, os crimes de ódio “encontram terreno fértil quando o Estado não é capaz de cumprir plenamente a sua missão de garantir a segurança, a proteção e a tranquilidade dos cidadãos”. Esta constatação parece-me irrefutável e traz à colação a inoperância da AIMA, que, ao atrasar a emissão de autorizações de residência, coloca os imigrantes numa situação de grande vulnerabilidade.

A manifesta incapacidade da AIMA é admitida pelo seu presidente, Luís Goes Pinheiro, que confessou ao Expresso que a “megaoperação de pendências” se encontra atrasada e que a task force que levará a cabo a tarefa só estará operacional no final de junho. A AIMA tem 400 mil pedidos pendentes e podem chegar a dois anos de espera. Mas, para Rui Pena Pires, a paralisia da agência deve ser relativizada, uma vez que atrasos nas autorizações de residência também se registam nos EUA, Austrália ou Reino Unido, pese embora, acrescento eu, esses países sofram uma muito maior pressão migratória do que Portugal.

A inépcia da AIMA pode não ser um problema para Rui Pena Pires, mas é-o para os muitos imigrantes que deambulam pelas ruas de Porto e Lisboa sem casa, sem emprego e sem perspetivas de ver a sua situação regularizada. Se o modelo da AIMA é assim tão virtuoso, como defende Rui Pena Pires, porque é que um ano depois da sua criação vemos tão parcos resultados para tão significativo orçamento? Porque é que a política migratória (ou ausência dela) portuguesa é, hoje, vista com preocupação pela Europa?

Os socialistas continuam em negação. Ainda não interiorizaram que já não são poder e que as suas políticas, designadamente as relativas à imigração, podem ser alteradas ou revertidas. As vacas socialistas já não voam, mesmo as roxas. Defender o fim da AIMA é absolutamente legítimo e pertinente, tendo em conta o descontrolo a que se chegou e cujas principais vítimas são os imigrantes.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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