Ensaio para a reinvenção da escola

O que se está a passar com a “defesa da escola pública”, estatal, está a gerar condições para o seu descrédito e falência: não é possível acreditar numa escolarização que deixa milhares para trás.

Ouça este artigo
00:00
04:14

Em 2020, OCDE enunciou quatro cenários para a escolarização: 1) a expansão da lógica de organização e funcionamento da escola seguindo e acentuando o padrão burocrático do comando e do controlo; 2) a privatização da educação face à falência da escola pública centralizada, uniforme e burocrática; 3) as escolas como centros de aprendizagem, renovando-se numa lógica de autonomia, diferenciação e inovação, “favorecendo formas dinâmicas de mudança de processos de aprendizagem, envolvimento cívico e inovação social”; e 4) desescolarização, “o aprender em qualquer lugar e em qualquer momento”, incrementado pelos “avanços rápidos da inteligência artificial, realidade virtual e aumentada e da Internet das Coisas”. Neste cenário mais radical “as oportunidades de aprendizagem estão amplamente disponíveis de forma "gratuita", marcando o declínio das estruturas de currículo estabelecidas e desmantelando o sistema escolar”.

Nesta breve nota prospetiva, teço algumas considerações sobre as forças e as dinâmicas que estão a construir futuros tristes de destruição da “escola pública”, tal como a conhecemos hoje, e enuncio a defesa do cenário 3 configurando outra gramática e outra lógica de serviço público.

O que se está a passar com a “defesa da escola pública”, leia-se, “escola estatal”, está a gerar condições para o seu descrédito e a sua falência social, pois não é possível acreditar numa escolarização que deixa milhares de cidadãos para trás. Não é possível aprisionar os direitos das crianças ao conhecimento, à socialização e à estimulação. Não é possível incrementar ainda mais as desigualdades de acesso, de frequência e de sucesso escolar. Não é possível a rigidez, a uniformidade, o “faz-de-conta”, a irresponsabilidade e a incerteza constantes.

Não é possível um regresso ao passado de uma “gestão democrática” controlada pelos professores e alheada dos pais, dos alunos e da comunidade educativa alargada. Esta escola não tem futuro e nem mesmo já presente. A não ser o presente do caos que abre o caminho da expansão do ensino particular e cooperativo ou o cenário da “desescolarização”, do ensino “doméstico” apoiado na “vasta conectividade alimentada por uma infraestrutura digital extensa e rica e pela abundância de dados [que] mudou completamente a nossa perceção da educação e da aprendizagem”. O cenário 2 e 4 têm largas condições para se expandirem e afirmarem no espaço público, regulado pelas lógicas de mercado e pelas promessas de Inteligência Artificial que pode facultar uma aprendizagem mais personalizada, mas também solitária e perdida do “laço social”.

O cenário 3 prevê o que poderíamos designar de “reinvenção da escola”. A manutenção de escolas fortes que “mantêm a maioria das suas funções”. Mas já é uma outra escola, mais livre, mais diversa, mais liberta do peso excessivo do “credencialismo” e da “diplomocracia”. O direito à educação assume o lugar da “obrigação escolar”, das grades, das prisões dos espaços, dos tempos, dos agrupamentos rígidos de alunos, concretizando a ideia de que outra escola é possível. As regras da sua gramática podem ser outras, mais liberta das ilusões e do faz de conta de que possível “ensinar a todos como se todos fossem um”.

É esta a escola que nos resta e nos pode resgatar das ameaças da extinção e da desregulação. Uma escola sociocomunitária, mais atenta às diversidades, às pessoas, aos contextos. Uma escola plural e à escala humana. Uma escola territorialmente inserida na comunidade, e que é sua pertença. Como refere a OCDE, “as escolas são, nesse sentido, peças-chave de ecossistemas educacionais locais mais amplos e dinamicamente evolutivos, mapeando oportunidades de aprendizagem numa rede interligada de espaços educativos”. E poderão ser agências poderosas de um desenvolvimento local integrado e onde os professores poderão ganhar relevo, autoridade e prestígio.

É certo que este cenário não está escrito, nem sequer desenhado. Mas seria bom que fosse sendo construído pelas inteligências em ação dos pais, dos professores, dos estudantes, e das instâncias locais que têm uma palavra decisiva a dizer e uma ação relevante a desempenhar. E que afirmassem o seu amor pela liberdade de organizar e gerir as escolas, de servir as pessoas, de interagirem localmente para o desenvolvimento de uma comunidade solidária e exigente. As escolas (e os professores) não morrerão. Mas terão certamente de se reinventar se quiserem continuar a construir futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários