Nos fóruns de incels, os homens fantasiam sobre matar as mulheres que não conseguem conquistar

São “celibatários involuntários” que não conseguem ter relações com mulheres e que, por isso, as odeiam. Na Internet, o discurso ganha contornos violentos e que se associam à extrema-direita.

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“As mulheres rejeitam-me provavelmente porque me odeiam”, diz um utilizador de um fórum para incels. O que se passa lá dentro? José Alves
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Não sou um rapaz de 19 anos, mas sou consumidora do TikTok e pelo menos uma vez por dia dedico largos minutos a “fazer scroll” numa aplicação cujo algoritmo parece ler-nos a mente, e nos dá mais e mais daquilo que sabe que queremos ver – cumprindo exemplarmente o seu propósito.

Precisamente por saber que não sou um rapaz de 19 anos, e por já me conhecer tão bem, o meu algoritmo não me entrega conteúdo misógino. Sabe bem que prefiro vídeos de cãezinhos. Mas a Internet está cada vez mais contaminada com discurso de ódio às mulheres, de exaltação de uma masculinidade hegemónica, exacerbada e tóxica, e ainda que o meu algoritmo crie uma bolha que me protege disso, perguntei-me: e se eu fosse um rapaz de 19 anos?

Foi assim que nasceu o João, a personagem que inventei para entrar no mundo dos incels, os homens involuntariamente celibatários, que se definem pela incapacidade de terem relações, sexuais ou românticas, porque a) se consideram “sub-humanos”; ou b) consideram que as mulheres não prestam. Qualquer uma tende a levar ao mesmo caminho: ódio e incitamento à violência contra “as fêmeas”, como se referem às mulheres. E, spoiler alert: se o João existisse, poderia perfeitamente ter-se rendido ao discurso radicalizado desta comunidade no final da experiência.

O primeiro passo foi criar uma conta no TikTok, à procura de entender o que esta plataforma, que, segundo números divulgados pela própria, no ano passado somava 3,3 milhões de utilizadores em Portugal, “dá” a um jovem nascido em 2005 que lá entre pela primeira vez.

Os primeiros vídeos são inócuos: tatuagens, humor, conselhos (ir ao ginásio, cortar no açúcar, ler). Ao fim de cinco minutos a “fazer scroll”, surge um jovem a preconizar: “Homem procura na rua porque não tem carácter. Mulher só para satisfazer as vontades não falta, mas mulher parceira está cada dia mais difícil.”

O intervalo entre vídeos de homens a dar “conselhos” de relacionamentos vai encurtando à medida que interajo com eles. São geralmente trechos de podcasts ou pessoas – a larga maioria, homens – a dizer coisas como: “Qual a mulher mais fácil para casar? A separada com filhos. Ou a que não pode ou não teve filhos”; “Fora o pai dela, nenhum homem pode ter intimidade com uma mulher”.

Aterro num vídeo onde um recluso conta detalhadamente como matou a mulher depois de ter descoberto uma infidelidade. Os comentários: “Ninguém pode julgar... só ele sabe o que se passou”; “A dor de uma traição só conhece quem já foi traído” e como “a cegueira” e “a raiva” justificam as acções criminosas. Lá no meio, alguém se diz chocado com o que está a ler. Fecho a app.

Por esta altura, o João ainda está longe de entrar nos fóruns onde se incentiva, por exemplo, a violação de todas as mulheres. Mas já está, sem saber, a consumir a ideologia redpill, que faz parte da manosfera (conjunto de sites e redes sociais onde são promovidos ideais misóginos) e consiste na adopção de uma masculinidade dominante e exacerbada que quer recuperar a hegemonia masculina. Já lá vamos.

Do TikTok salto para o Reddit, onde escrevo “incel” na barra de pesquisa. Encontro pouco mais do que um subreddit (nome dado às comunidades dentro do Reddit) chamado IncelsExit, onde homens que outrora se identificaram como celibatários involuntários partilham agora vitórias e palavras de incentivo.

É aqui que encontro o Tom, chamemos-lhe assim, que partilha com o resto da comunidade como se sente inferior por não conseguir a atenção de uma mulher. Apresento-me como João, digo-lhe que entendo pelo que está a passar e pergunto-lhe se quer conversar. Aceita e conta-me como o pai, “que tinha muito sucesso com as mulheres quando era mais novo”, pensa nele como “um homem falso” por, aos 18 anos, nunca ter beijado uma rapariga.

“As mulheres rejeitam-me provavelmente porque me odeiam”, diz. “E tu, como te sentes em relação a elas?”, pergunto. “Comecei a odiá-las depois de entrar na comunidade incel. Mas quero sair. Lá só alimentam o teu ódio. Alguns grupos incentivam massacres em escolas, ou a raparigas. E infelizmente há boas pessoas que são atraídas para isso. Pessoas que só estão tristes ou deprimidas, como eu ou tu. Porque é solitário pensar que és o único ser humano que é rejeitado”, diz Tom, que termina a conversa com uma palavra de motivação: “Tu consegues. Vive a tua vida e não penses tanto em raparigas”, e um aviso, que vai ser ignorado: “Não entres na comunidade incel.”

Como nasce um incel?

Fui directa à fonte para entender. Perguntei ao Brad (nome fictício), um norte-americano de 21 anos que deixou uma mensagem de motivação no subreddit ExIncels, se aceitava falar comigo, depois de, desta vez, me identificar como jornalista. Aceitou.

Contou-me que está actualmente na Força Aérea dos Estados Unidos e nasceu numa zona “muito conservadora e religiosa” no sul do país. As crenças incel começaram a fazer parte da sua vida quando tinha “11 ou 12 anos”: “O meu pai nunca estava em casa e a minha vida era algo instável. Tinha muitos problemas de auto-estima e dismorfia corporal. Estas questões, aliadas à puberdade, ao ser baixo e, ao mesmo tempo, sentir-me cada vez mais interessado em relacionamentos, levaram a que sentisse desprezo por mim próprio e sem esperança de conquistar alguém. Isto tudo transformou-me lentamente num incel.”

Há algumas características que nos dão algumas pistas sobre o perfil dos incels. São sobretudo jovens heterossexuais, com idade até aos 30 anos, que vivem na Europa e na América do Norte. Juntam-se online para “expressar a sua raiva e vontade de vingança contra as mulheres”, explica Ana Luísa Abreu, psicóloga e responsável do projecto MaRvel (Masculinidades Reveladas), que se enquadra no programa Conciliação e Igualdade de Género e que percorreu escolas e instituições do país para auscultar jovens e masculinidades.

A ideologia incel parte da premissa de que “o feminismo foi longe de mais e que a situação só pode ser melhorada com a reversão dos direitos das mulheres”, continua. Dentro desta ideia, há diferentes ramificações. Uma delas é a blackpill, a visão determinista e fatalista que defende que todos os homens que não são atraentes estão, à partida, condenados a serem rejeitados, porque as mulheres atraentes e inatingíveis (a quem chamam Stacy, numa tentativa de as caricaturar) irão sempre escolher um Chad, os homens bem-parecidos.

Os incels descem, neste universo, à condição de “sub-humanos”, condenados à solidão e ao desprezo por culpa das suas características físicas. As mulheres são tidas como criaturas fúteis e cruéis, que nunca se irão interessar por um homem fisicamente desinteressante, independentemente das outras qualidades que possa ter. Estão, então, a “privar os incels do direito básico que acreditam ter à partida, pelo seu estatuto masculino, que é fazer sexo”.

No 4chan, um fórum para onde migro depois do Reddit, alguém escreve: “Tenho um emprego bem pago, sou alto e tento ser boa pessoa. Leio livros, estudo, nunca criei muitos problemas. Até tenho um QI alto. Mas sou gordo e, por isso, todas as mulheres me odeiam. Se fores gordo, é literalmente o teu fim.”

As respostas vão já desvendando como se desenham as relações nesta comunidade: “Já pensaste em perder peso, atrasado mental?”; “Não tens, literalmente, nenhuma desculpa para ser gordo. Pára de te queixar e vai para a passadeira, porco.”

Neste fórum, percebo que o tom sobe em relação ao Reddit — que em 2017 baniu o subreddit Incels, num esforço para acabar com este tipo de discurso na plataforma. Um porta-voz do Reddit garante que “conteúdo relacionado com [a ideologia] incel não é permitido”, em linha com as políticas que “proíbem conteúdo de ódio com base na identidade ou vulnerabilidade”.

Refere ainda que a plataforma dedicou “equipas de segurança internas”, que “usam ferramentas automáticas e humanas para detectar e remover qualquer conteúdo que viole” as normas. O conteúdo incel não é, assegura, “um problema prevalente” no site.

Pelas minhas deambulações, confirma-se, salvo esporádicas excepções. Como um utilizador, chamemos-lhe William, que parece fazer sua missão a publicação das 141 páginas do manifesto de Elliot Rodger, uma espécie de “herói incel” que em 2014 assassinou seis pessoas e feriu outras 14, antes de se suicidar.

No manifesto que partilhou antes do ataque, Rodger mencionou questões de saúde mental, o seu desprezo por mulheres e a sua frustração por, aos 22 anos, nunca ter tido relações sexuais ou beijado uma rapariga. Descreveu-se como um “cavalheiro magnífico e ideal”. Chamou ao dia em que cometeu os homicídios o “Dia da Retaliação” e disse não ter “qualquer alternativa que não vingar-se da sociedade”, que lhe “negou” sexo e amor.

Tentei conversar com o William, que, além de partilhar página a página o manifesto, vai escrevendo coisas como “recuso-me a acreditar que as mulheres merecem os mesmos direitos que nós”, “mostrar respeito por algo que nasceu para te servir é nojento”, ou desabafos sobre a própria vida, geralmente num tom depressivo.

Na nossa curta conversa, percebo que não é de tantas palavras como Tom, e também que é mais desconfiado — e completamente radicalizado. Sobre Elliot Rodger, diz-me que “o que ele fez não foi horrível, mas sim justo”. “Infelizmente passou pelo que era necessário para mostrar ao mundo que as fêmeas não são nada”, escreve-me.

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Mas como é que um jovem que não tem relações sexuais se transforma num que odeia mulheres? Brad acredita que estas ideologias são um “pseudoculto” que acabam por fazer uma espécie de “lavagem cerebral” a jovens “deprimidos e que têm simplesmente falta de confiança”, transformando-os em “misóginos”.

Mas “há sempre uma dimensão mais profunda nesses comportamentos”, enquadra Tiago Rolino, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Isto deriva do sistema patriarcal e capitalista, que designou que, desde o nascimento, os homens tivessem determinados comportamentos para que a sociedade os identifique como tal.”

Se olharmos para o contexto onde nos inserimos, esses comportamentos podem incluir “ser provedor, ser forte emocionalmente, ser corajoso, agressivo, temerário, sedutor”, por exemplo. Até há não muito tempo, a masculinidade assentava em “não querer saber da beleza ou de se arranjar” (agora o autocuidado faz parte das “novas masculinidades”). Mas ainda que as características associadas à masculinidade vão mudando, e “ser homem agora seja diferente de há 100 anos”, não quer dizer que os novos padrões se tornem menos “hegemónicos ou patriarcais”, salvaguarda Tiago Rolino.

E há um factor imutável: agora ou há 100 anos, ninguém consegue cumprir todas as expectativas socialmente impostas. As frustrações que daí derivam podem “ser canalizadas” não só para as mulheres, mas até para “outros tipos de masculinidades, mais cuidadoras ou feministas”.

As ligações à extrema-direita

Entra a redpill. O termo é uma referência à cena do filme Matrix, em que o protagonista é convidado a escolher entre o comprimido azul, que o manteria preso ao mundo ilusório, ou o vermelho, que lhe daria consciência da realidade.

Seguindo esta lógica, os defensores da redpill dizem que só “tomando o comprimido vermelho” é que podem “despertar” da “manipulação” dos movimentos feministas. O resultado: uma comunidade de “machos alfa”, que querem desfazer as conquistas rumo à igualdade de género.

No TikTok, encontrei vários vídeos que encaixam nesta definição. Cruzei-me até com duas páginas que aludiam à terminologia no nome (@hardpillnetwork, com 87 mil seguidores e @uma_dose_vermelha, com 14 mil) e enviei-as ao TikTok, juntamente com algumas questões relacionadas com a prevalência de discurso redpill na plataforma.

Em resposta, foram-me pedidos alguns vídeos exemplificativos e quando voltei àquelas páginas, tinham sido banidas. Encontrei alguns vídeos semelhantes, que enviei, mas a plataforma não respondeu às minhas perguntas; e remeteu-me para a página das políticas da plataforma.

O que têm em comum a red e a blackpill? Ambas pretendem “subalternizar a feminilidade e a mulher”, refere Tiago Rolino. É que ainda que a construção do que é “ser homem” possa mudar ao longos dos anos, há “pilares mais ou menos estáveis ao longo do tempo”, como o gabar-se “das maiores conquistas” e o “usar e abusar” das mulheres. Na blackpill, esta concepção assume a forma que vamos encontrar num fórum de incels onde me infiltrei: “Nós, incels, temo-nos masturbado a olhar para estas prostitutas desde que somos adolescentes e elas nunca nos deixaram provar, por isso o Governo devia forçá-las a fazerem sexo connosco, como uma forma de reparação por todos estes anos de tortura”, escreveu um utilizador. Na redpill, o discurso é mais: “Se queres que um homem te ame, então tens de estar calada.”

As últimas palavras são de Andrew Tate, o influencer que aguarda julgamento por tráfico de seres humanos, violação e associação criminosa, e que ficou conhecido por dizer coisas como “as mulheres são para ter filhos, ficar em casa, estar caladas e fazer café” ou que precisa de ter autoridade sobre as mulheres com quem sai (que prefere que tenham 18 anos para conseguir deixar “marcas”), porque “não podes ser responsável por um cão se este não te obedece”.

Esta masculinidade à la Tate, a dos homens que a tentam “impor através da musculação” ou “sendo conquistadores”, anda a par com a apologia do dinheiro enquanto instrumento de poder e sedução, e defende o papel do homem enquanto provedor e figura de autoridade de uma mulher que deve ser submissa.

Em Portugal, há quem tente imitar Andrew Tate. É o caso do youtuber João Barbosa, mais conhecido por Numeiro, que deseja, no X (antigo Twitter), “feliz dia das mulheres aos homens que vão no passageiro com a namorada a conduzir” e que defende que “mulheres comprometidas não deviam ter Instagram, [porque] carro que não está para venda não está no stand”.

A fórmula é a mesma: também Numeiro, que foi recentemente alvo de uma queixa-crime pela Associação Portuguesa de Apostas e Jogos Online por ter divulgado sites de apostas ilegais, gosta de exibir os carros que possui, as viagens que faz, de se apresentar como poderoso e rico, de se referir às mulheres como propriedade, de assumir o papel do guru que comenta e percebe de tudo um pouco: desde política a comunicação social, passando por imigração ou casas de banho mistas. Temas familiares?

No rescaldo das eleições legislativas de Março último, o youtuber congratulou-se por “fazer a diferença no país”, depois de um utilizador do X ter escrito que “a maior parte dos putos só votaram no Chega porque o Numeiro também votou”. Não é estranha esta associação à direita radical populista: “Estes movimentos reaccionários e de extrema-direita que estamos a ver surgir na Europa e em Portugal querem manter o status quo, onde os homens brancos de classe social elevada, heterossexuais e cisgénero (que se identificam com o género atribuído à nascença) mantenham os seus privilégios”, refere Tiago Rolino.

Muitos dos mesmos temas são discutidos no podcast de Tiago Paiva, outro youtuber, onde é regra o discurso falacioso e misógino, mascarado de verdades absolutas ou pseudociência, com pouco ou nenhum contraditório. Comum é também a presença de apoiantes, militantes ou deputados do Chega.

Num dos episódios, quatro convidados discutem queixas de violência doméstica. Tiago Paiva vaticina que “à partida um homem tem mais força que a mulher, por isso é normal que haja mais queixas” de mulheres. Debatem também se uma namorada pode ir à discoteca: “Sozinha, nem pensar. Se for comigo, eu, como chefe da dupla, tenho de zelar pela segurança dela. É a missão do homem zelar pela mulher”, responde um deles. Sobre o assédio, o painel de quatro homens considera haver uma espécie de injustiça. É que, lamentam-se, “se for uma mulher a apalpar um homem, está tudo bem”, mas o contrário já não é bem assim.

“Este tipo de retórica à volta das questões de género é muito frequente, mesmo em pessoas que não consomem estes conteúdos”, refere Ana Luísa Abreu. Em conversas que teve com mais de mil alunos em diferentes escolas, a propósito do MaRvel: Masculinidades Reveladas, percebeu que havia algumas fórmulas que permitiam identificar o consumo desse tipo de conteúdos por parte dos jovens: “O uso de argumentos quase libertários, de suposta liberdade de expressão, do ‘agora já não se pode dizer nada’ quando estamos a falar de discurso que objectifica sexualmente mulheres, ou racista, ou misógino... é muito comum na manosfera e mina qualquer possibilidade de diálogo e de desconstrução.”

O branqueamento da natureza racista e xenófoba dos partidos da direita radical é também comum. Num episódio onde convidou Rita Matias, deputada do Chega conhecida por se afirmar contra a “ideologia de género” (termo usado para atacar e descredibilizar a comunidade LGBT+) ou o aborto, Tiago Paiva começa por lhe perguntar “como é que lida com a toxicidade de o partido estar constantemente a ser acusado de ser racista, xenófobo e machista”. Com outro militante do mesmo partido, ri-se: “Vocês, para serem militantes do Chega, deviam ter um curso de defesa, porque é toda a gente a cair-vos em cima.”

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Alguns tentam impôr-se como líderes José Alves

Também não é incomum que as fake news, uma das estratégias preferidas dos movimentos de extrema-direita, peguem em temas relacionados com papéis de género, orientação e identidade sexual, ou outros que a masculinidade hegemónica teima em atacar.

A narrativa do “ataque à família”, que também já chegou a Portugal, “um ataque que não se materializa em nada”, é usada para “implementar um pânico moral, que cria espaço para que se acredite que a salvação perante esta ameaça é o ressurgimento de uma liderança hipermasculina, onde habitualmente o líder é um homem, com um discurso muito focado em dimensões associadas à masculinidade, como a defesa, a protecção, a segurança e a ideia do inimigo”, afiança Ana Luísa Abreu.

A evolução das políticas públicas, que aproximam homens e mulheres, que deixam de compactuar com o assédio e a violência sexual, que acolhem imigrantes e aceitam diferentes identidades e orientações e sexuais, “cria uma percepção de ameaça” para quem tem interesse em manter o poder e privilégios.

Tiago Rolino relembra: “As pessoas acreditam que o contrário de igualdade é diferença, mas o contrário de igualdade é a desigualdade. Não é por existir um sistema igualitário que toda a gente tem de ser igual. A ideia não é que toda a gente se vista da mesma maneira, por exemplo. Todos temos direito à nossa individualidade.”

Dentro de um fórum incel

A última paragem do João é num fórum onde se fala apenas de celibato involuntário e ódio às mulheres. Aqui, são comuns as imagens de suásticas e perfis com nomes como “violador de fêmeas” – uma espécie de aviso para a violência do que vou encontrar. As fantasias descritas são tão perturbadoras como detalhadas, pelo que devo avisar que os próximos parágrafos podem transtornar alguns leitores.

Fala-se em “estrangular o filho de uma mulher com as suas trompas de Falópio”, “prender o pescoço de uma mulher à traseira do carro e começar a conduzir”, e imagina-se “quão catártico seria atirar ácido à cara das cabras que te rejeitam e ficar a ver a cara delas a desfazer-se”. A apologia da violação é recorrente: “Reparem como Deus desenhou as fêmeas não só para serem fisicamente mais fracas, mas para que pudessem ser forçadas a fazer sexo” ou “as mulheres deviam ser usadas para foder diariamente”.

Foi aos 14 anos que Brad entrou nestas comunidades. Diz ter encontrado “pessoas que entendiam” os “problemas e medos de um adolescente vulnerável”, mas rapidamente passou a “pensar em ideias incel constantemente”. Se visse uma mulher, “assumia imediatamente” que ela o julgava pela aparência ou que “era uma prostituta”. E ainda que não exteriorizasse o seu ódio, assume que era “frio e rude” com qualquer mulher heterossexual, já que “subconscientemente as via como potenciais parceiras” que não conseguia conquistar.

Perante a “ameaça percebida à sua masculinidade”, que deriva do facto de não conseguirem relacionar-se com mulheres, “há uma compensação, uma demonstração extrema da masculinidade, nomeadamente pela violência”, destrinça Ana Luísa Abreu.

E ainda que apenas “uma pequena percentagem de incels poderá, de facto, vir a cometer ataques violentos”, a ideia de fantasiar, de idolatrar quem perpetrou violência contra mulheres, e de pensar “se eu quiser, posso cometer violência”, é “uma fonte de ‘empoderamento’ e um sentimento de recuperação da masculinidade e, por isso, do estatuto social”.

Esta “crise da masculinidade” agudiza-se quando os homens começam a perceber que o que é esperado de si é um “ideal inatingível”. Mesmo que a sociedade já lhes diga que “os homens também choram, os homens também têm medo”, ou tantas outras, os rapazes “não vêem modelos de referência [desses comportamentos] à sua volta”. O pai não é assim, o tio não é assim, ou o primo ou o avô.

E essa desorientação pode provocar, por um lado, sentimentos de “insegurança e baixa auto-estima” ou, em contrapartida, “de raiva e frustração” – o que facilita a adoração a pessoas como Andrew Tate, que vêm dar resposta a este “vazio de referências”, com um discurso muito atractivo para quem se sente desalentado.

As consequências na saúde mental

O que fez Brad deixar de ser um incel? A resposta simplista que tentei adivinhar: “Uma namorada.” A resposta verdadeira: “Tempo e uma tentativa de suicídio.”

“Em 2022 tive um colapso mental que quase resultou numa tentativa de suicídio. Era a segunda vez que isto acontecia, por isso fui obrigado a fazer terapia”, conta. As suas crenças “estavam lentamente a desaparecer” à medida “que amadurecia e era forçado a interagir com outros”, mas foi a terapia que “eliminou a grande maioria dos pensamentos” deste género.

As repercussões na saúde mental de quem mergulha na masculinidade tóxica são inegáveis. “Mesmo que não façam parte destas comunidades, quando os homens não atingem determinados patamares da masculinidade sentem-se frustrados e acabam por ter comportamentos que não coincidem com os que interiormente acreditam”, afiança Tiago Rolino. Há uma tendência para “não demonstrar emoções, não falar, não procurar ajuda para cuidar da saúde mental e até física, o que faz com que morram mais, mais cedo, que tenham mais problemas de saúde”.

Em Portugal, de acordo com dados do INE de 2021, 14,5 homens em cada 100 mil morreram por suicídio. O número é bastante inferior quando olhamos para as mulheres: foram 3,8 em cada 100 mil, ainda que elas tenham taxas de depressão mais altas – o que pode indiciar um subdiagnóstico.

Os comportamentos de risco como prova de masculinidade — “conduzir mais rápido, beber mais, consumir mais drogas, nadar até mais longe” —, a competitividade que muitas vezes alicerça as relações entre homens, pode favorecer situações de perigo e até morte.

É também neste contexto que se cimenta a agressão às mulheres, “como forma de pertença ao grupo e de validação”, refere Ana Luísa Abreu. Assédio, piropos, troca de conteúdo pornográfico ou de “humilhação e objectificação” são formas de “coesão entre grupos de homens e rapazes”.

Estar em comunidades incel deu a Brad um novo olhar, mais “empático”. “Pode parecer estranho”, admite, mas agora diz conseguir ver além da ideia de que “todos os incels são monstros irremediáveis”: “Ainda que esses existam, alguns estão apenas num mau lugar mentalmente, a precisar de orientação e empatia para voltar ao caminho certo.” E encontraram apoio no sítio errado.

É aqui que as comunidades entram. “É importante uma sensibilização ampla para estes fenómenos”, defende Ana Luísa Abreu. O MaRvel, que termina este mês, deu formação a profissionais em escolas, para que consigam identificar a linguagem e as narrativas radicalizadas, mas também para que consigam “criar momentos de reflexão”, com “abertura e um diálogo horizontal, sem julgamentos”. “Muitas vezes a própria escola está construída com base num sistema muito competitivo, o mundo do trabalho também, as redes sociais também funcionam nesta lógica. É importante criar lugares de pertença e de comunidade.”

Apesar dos “pensamentos intrusivos” que volta e meia regressam, Brad congratula-se por ter perdido a parte “tóxica e horrível” que cultivava quando olhava para a ideologia incel como fórmula para viver. “Estou há dois meses com uma mulher incrível que me tem ajudado imenso. Sou um tipo baixo, com uma cara mediana, que pensava que ia ficar sozinho para sempre e se virou para grupos de ódio para conseguir lidar com o ódio que sentia em relação a mim. Se eu consigo sair disto, qualquer um consegue.”

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