Nos 50 anos do 25 de Abril – Memória e esperança

Este rio de Abril, cinquenta anos depois de ter começado a serpentear pela terra portuguesa, vem fazendo um percurso sobressaltado na procura do mar aonde um dia há-de chegar.

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Muitas injustiças se disseram contra a Revolução dos Cravos. Muitos atropelos se cometeram à luz, ou, se preferirem, à sombra do 25 de Abril. Num momento em que a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e os direitos sindicais se aprofunda, em que o país vive uma grave crise política, com um horizonte de inquietantes incertezas entre as quais avulta o futuro do Estado social, não gostaria que as minhas palavras ultrapassassem a tonalidade da singeleza, porque sinto que relembrar a Revolução de Abril com um discurso solene é, de algum modo, ferir a simplicidade, a generosidade, a fraterna ambição, a belíssima solidariedade com que os militares de Abril, marchando ao compasso do coração popular, desceram pelas ruas e avenidas da cidade e entoaram o mais musical, o mais vibrante, o mais quente de todos os coros – o do monumental silêncio das armas.

Quase parecia impraticável aquele Abril por tão excessivo: inesperada rapsódia de sorrisos, de abraços, de crianças deslumbradas, de velhos atónitos, de mulheres e homens vivendo velozmente, de povo e militares irmanados na mesma alegria, de bandeiras colorindo o vento, de tanques a ondular, de tranquilos carros de assalto, de lentos unimogues deslizando por velhas ruas como irmãos a ver florir a esperança no olhar dos trabalhadores e a acarinhar o rebentar dos cravos nas bocas das espingardas.

Era um Abril tão ansiado, tão amadurecido e tão sofrido dentro do mais íntimo de tantos de nós, lá onde só a esperança e a confiança não morrem, que ele irrompia dos olhos, das mãos e das bocas com tal ímpeto que, por vezes, estilhaçava a frágil luz de uma Primavera ainda tão breve.

Abril jorrava como um rio, inundando as margens com a liberdade, a democracia, a justiça social, a cultura, a arte, a dignidade da cidadania plena. Um rio que muitos sonharam que um dia traria à flor das águas essa planta tão impossível como o trevo de quatro folhas, mas que os humanos jamais deixaram de procurar e a que chamam felicidade.

Dizem que os rios, sozinhos ou acompanhados, sempre correm em busca do mar. Porventura assim será, mas o que é verdade é que os rios e seus afluentes correm em leitos muito desiguais. Este rio de Abril que aqui relembro, cinquenta anos depois de ter nascido e começado a serpentear pela terra portuguesa, vem fazendo um percurso sobressaltado na procura do mar aonde um dia há-de chegar.

O seu fluir tem sido lento, bem o sabemos, mas o tempo é eterno e por isso, na hora certa, este rio de cravos, este rio de Abril, alcançará o mar da democracia política, social, económica, cultural e ecológica. Mas até lá quantos acidentes de percurso ainda o esperam? Sejam quantos forem, os que não desistem de lutar sabem que jamais alguém fechará as portas que Abril abriu já lá vão 50 anos.

25 de Abril de 2024. Dia de festa! Sempre, mesmo que em tempo de mágoas, mas não de desespero porque só desiste quem “no mar de si próprio estagna”. E nós, homens e mulheres de Abril, somos determinação, movimento e luta. Por isso sabemos que as mágoas de hoje trazem agarradas às suas raízes os embriões das alegrias de amanhã.

Toda a festa tem a sua face de tristeza, mas a tristeza engendra dentro de si o canto da alegria, ou seja, estamos afinal perante a tensão dos contrários de que falava Heraclito. O mesmo filósofo escreveu que se não tivermos esperança não chegaremos a descobrir o inesperado. Porém, a esperança, como bem disse algures José Barata-Moura, não é uma espera. É a parição do futuro.

Os homens e as mulheres de Abril, nascidos no sem-fim do tempo, serão os parteiros desse futuro, serão aqueles cujos Trabalhos e Dias se orientam para que o rio de Abril consiga um dia fertilizar os terrenos da democracia política, económica, social, cultural e ecológica. Mas essa é outra história. Uma história a escrever-se e reescrever-se dia a dia pelas mãos do povo português.

Essa escrita para ser eficaz e para não se deixar contaminar pela metafísica política necessita que os princípios de equidade na escola pública sejam repensados, que se reveja com urgência o currículo da formação inicial de professores, se ajuste a formação contínua dos docentes à diversidade dos contextos, se fomentem políticas que apetrechem os jovens com as ferramentas necessárias para que possam fazer uma análise criticamente rigorosa da realidade, o que passa também por uma revisão cuidada dos currículos e programas dos diversos níveis de ensino.

Num plano global, é imprescindível que a política e os políticos conquistem um consistente prestígio social, indispensável à travagem do crescimento dos populismos e que os programas políticos dos partidos que se revêem no horizonte aberto pela Revolução dos Cravos sejam um efectivo contributo para que a maioria do povo português possa um dia cantar a imortal canção de José Afonso, tendo como referente não apenas Grândola mas Portugal a que Manuel Alegre, há quase 60 anos, chamou premonitoriamente o País de Abril.

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