“Não adianta ter um direito e não ter formas de reivindicar esse direito”

Decisão do Tribunal de Direitos Humanos em caso climático deixa claro que existem obrigações dos Estados europeus de mitigação de gases com efeito de estufa, explica especialista em direito climático.

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Maria Antonia Tigre, directora para litigância climática do Sabin Center for Climate Change Law da Universidade de Columbia, nos EUA DR
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A justiça climática deu um enorme passo esta terça-feira, com a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no caso da associação KlimaSeniorinnen: a acção climática insuficiente dos países pode ser considerada uma violação de direitos humanos.

Maria Antonia Tigre, directora para litigância climática do Sabin Center for Climate Change Law da Universidade de Columbia, nos EUA, coordena a enorme base de dados onde estão arquivados documentos de mais de mil casos relacionados com as alterações climáticas por todo o mundo. Em entrevista ao Azul, analisa o impacto da decisão do TEDH em futuros processos climáticos na Europa.

Que inovações trouxeram estas decisões do Tribunal Europeu?
Para começar, é importante ter em mente que é a primeira vez que temos um tribunal regional, internacional, com um caso contencioso relacionado com mudanças climáticas. Isso, por si só, já tem grande relevância. Fizeram questão de que o procedimento fosse mais rápido e deram relevância a esses casos, dando uma resposta rápida o suficiente para a crise em que nos encontramos hoje em dia. No caso da associação KlimaSeniorinnen, que foi o único caso que foi bem-sucedido, se formos avaliar pelo resultado, a decisão foi muito importante, em primeiro lugar, por reconhecer que, de facto, as mudanças climáticas infringem direitos humanos dentro da Convenção Europeia de Direitos Humanos, algo que vários tribunais nacionais já tinham reconhecido, mas agora foi um reconhecimento expresso pelo tribunal europeu, e que isso implica que existem obrigações dos estados de mitigação de gases com efeito de estufa.

No caso da KlimaSeniorinnen, é a Suíça que tem que obedecer ao tribunal, mas a Comissão Europeia já veio dizer que vai analisar a decisão com cuidado. Quais podem ser os impactos dessa decisão?
O que o tribunal disse foi que a Suíça não tinha adoptado medidas suficientes dentro do seu sistema regulatório nacional para fazer a mitigação dos gases com efeito de estufa. Isso inclui ter um orçamento de carbono, uma análise de quanto que se gasta e quanto se pode gastar, e essa análise estava em falta. Além disso, a Suíça também não tinha implementado medidas que o país se tinha comprometido a adoptar. Tinha estabelecido um objectivo de redução e esse objectivo não tinha sido cumprido. É uma falha dupla da Suíça em relação à adopção de medidas de ambição e também a implementação dessas medidas. O que é interessante também na decisão é que a corte não falou que a Suíça tem que reduzir a X% ou tem que adoptar tais medidas para que corrija essa falha que ocorre actualmente. Deixou à discrição do Estado decidir como implementar isso e como remediar essa situação, o que vai ser feito sob supervisão do Comité dos Ministros, mas têm possibilidade de decidir como remediar essa situação da maneira que o país decidir. Em relação aos outros Estados, a decisão em si também menciona especificamente o que essa interpretação significa em termos mais abrangentes, sobre a violação do artigo 8, de protecção da vida privada e bem-estar. É importante adoptar e aplicar medidas regulatórias, leis, normas para fazer essa mitigação. E essa interpretação da Convenção Europeia é feita também com o Acordo de Paris, com a ciência e os relatórios do IPCC, com o que tem sido publicado de mais recente em termos de ciência climática. É muito importante o reconhecimento de que existe uma ligação entre essas diferentes normas na interpretação que está sendo feita da Convenção. E isso implica que têm que adoptar medidas para reduzir as concentrações de gases com efeito de estufa e diminuir o aumento da temperatura global.

Fica feito o trabalho de casa de estudar como a ciência climática pode ser integrada na aplicação do direito. Isso também pode ser útil para guiar os juízes que vão analisar os casos em cada um dos países?
Com certeza. Acho que outro aspecto importante é que usaram o aumento de temperatura de 1,5°C como base, não foi de 2°C. Isso é relevante, porque a maioria dos tribunais ao redor do mundo usam o critério do Acordo de Paris, que fala em "abaixo dos 2°C", não fala necessariamente que tem que ser 1,5°C. O Tribunal Europeu foi mais além, estabeleceu 1,5 como objectivo.

Outra convenção mencionada na decisão das “avós do clima” foi a Convenção de Aarhus, sobre a participação dos cidadãos e o acesso à justiça em questões ambientais. Que impacto esse aval pode ter para os casos de litigância nacionais?
Sim, também tem influência. É importante pensar sempre no direito ao meio ambiente como um todo. A Convenção Europeia não tem o direito ao meio ambiente estabelecido, mas tem-se feito uma interpretação que é consistente com a jurisprudência do tribunal, de se entender o direito ao meio ambiente, e agora também esse aspecto das mudanças climáticas. Há uma parte substantiva, que é o direito ao meio ambiente e o direito a um clima estável, e há a parte procedimental, que é participação, o acesso à justiça e esses aspectos. E isso é muito importante, porque não adianta ter um direito e não ter formas de se reivindicar esse direito, de participar em decisões públicas e ter acesso a tribunais e poder reivindicar direitos. O reconhecimento disso também é extremamente importante. Outra questão procedimental que houve nessa decisão é que se permitiu que ONGs também possam iniciar casos relacionados com mudanças climáticas. E isso foi uma interpretação que foi mais abrangente nesse caso, precisamente por causa da emergência climática em que vivemos hoje em dia. Em diversos países isso já era possível, mas no Tribunal Europeu ainda não tinha sido.

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