Avanços, desafios e dilemas dos estafetas em Portugal

Mais que legislações favoráveis, é essencial um esforço conjunto entre Estado, empresas e trabalhadores que leve em consideração as demandas e necessidades dos estafetas.

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Em março deste ano, os ministros do Emprego e Assuntos Sociais da União Europeia acordaram uma diretiva de grande interesse dos trabalhadores vinculados a plataformas digitais na Europa. A diretiva aborda pontos importantes, como a presunção de relação laboral e a gestão algorítmica, estabelecendo normas mínimas que podem minimizar práticas discriminatórias e injustas. Reconhece a necessidade de transparência entre trabalhadores e plataformas, sendo uma das pautas trazidas pelos estafetas, no tocante ao gerenciamento de seu trabalho.

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Desde Maio de 2023 que se passa a presumir a existência de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital Rui Gaudêncio

Uma das dimensões da precariedade enfrentada pelos estafetas está ligada ao controle algorítmico, que monitoriza cada ação, gerando insegurança devido à pressão e ao controle das plataformas. Essa pressão ocorre através de políticas de pontuação, taxas diferenciadas para entregas e punições, que resultam em uma conduta produtivista e longas jornadas laborais.

O trabalho de estafeta atrai muitos imigrantes, principalmente homens, de várias qualificações. Apesar da informalidade, insegurança e poucos benefícios, muitos preferem esta atividade a condições de trabalho ainda mais precárias. Aceitam as condições das plataformas, sem ver uma forma clara de contestar ou resistir ao poder que elas exercem sob a máscara da autonomia, dada a opacidade dos algoritmos e de suas políticas internas.

Contudo, tem havido algumas movimentações positivas em prol dos trabalhadores. A última manifestação foi um marco na luta dos estafetas contra más condições de trabalho, baixos salários e desamparo das plataformas e do Estado. Esta foi a segunda paralisação do ano, e é esperado que mais ocorram, já que as demandas dos trabalhadores não foram atendidas.

Apesar da ausência de vínculo sindical formal e das dificuldades na organização coletiva, uma resistência coletiva tem sido promovida contra a exploração, através de comunicação informal em pontos de espera ou grupos de WhatsApp. O Movimento Estafetas em Luta e a União Nacional dos Trabalhadores Independentes por App são organizações independentes que têm conseguido mobilizar os trabalhadores em busca por direitos.

A alteração legislativa de maio de 2023, introduzindo o artigo 12.o-A no Código do Trabalho para tratar da “presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”, já apresenta desdobramentos positivos. A ACT - Autoridade para as Condições de Trabalho tem notificado as plataformas digitais para reconhecer o vínculo e formalizar contratos de trabalho com os estafetas. Contudo, as empresas continuam argumentando que os trabalhadores são autônomos e independentes.

Em 27 de março, o Tribunal de Castelo Branco determinou o vínculo laboral entre quatro estafetas e a plataforma UberEats. Apesar do anúncio de recurso pela empresa, essa sentença é crucial na luta dos estafetas por melhores condições e direitos laborais mínimos, além de servir como precedente para outras ações judiciais similares.

Entretanto, a luta transcende questões legais; é também ideológica. No trabalho em plataformas, a ideologia desempenha um papel fundamental, especialmente ligada ao ideário neoliberal do empreendedorismo. Essa atividade é frequentemente retratada como autônoma e independente, transformando trabalhadores em “empreendedores”. No entanto, é uma estratégia na gestão do trabalho que nega a relação laboral e obscurece o assalariamento, mascarando a realidade de direitos negados e intenso controle, resultando em instabilidade e insegurança.

A narrativa empresarial promove a ideia de que independência e flexibilidade nos contratos de trabalho oferecem mais vantagens do que os direitos e garantias dos empregos formais. Isso é particularmente convincente para os estafetas imigrantes, muitos dos quais enfrentam barreiras significativas no mercado de trabalho convencional. Para eles, mesmo possuindo qualificações avançadas, garantir um emprego formal com direitos é difícil, levando-os a trabalhos precários, com salários baixos e sem contrato ou benefícios.

Nesse contexto e influenciados por discursos já internalizados socialmente, muitos não buscam contratos formais de trabalho, temendo uma redução de rendimentos e a impossibilidade de aumentar seus ganhos conforme a produtividade. Ademais, alguns trabalhadores não confiam no Estado, refletindo a crença na ideologia do livre mercado e na solução dos problemas diretamente com as empresas. No entanto, essa abordagem resulta em ganhos nulos ou limitados nas mobilizações.

A comparação entre as condições oferecidas pelas plataformas e empregos tradicionais ressalta a visão distorcida de que o trabalho de plataforma é mais lucrativo e acessível, especialmente para os imigrantes indocumentados, que frequentemente não têm outra opção além de trabalhar sob exploração e vulnerabilidade social. Essa vulnerabilidade atravessa o trabalho, pois as complexidades da atividade se entrelaçam com elementos estruturais do capitalismo, camuflados pelas formas de dominação ideológica.

Dessa forma, os estafetas associam seus ganhos financeiros — que podem ser maiores do que em outros empregos — às características propagadas pelas plataformas, que retratam o trabalho como independente, autônomo e flexível. Assim, embora busquem direitos básicos, temem que contratos formais comprometam sua autonomia e reduzam seus rendimentos. A tensão entre garantir direitos e manter a flexibilidade representa um dilema complexo, exigindo uma análise cuidadosa das políticas trabalhistas, das estruturas de poder subjacentes e das aspirações dos trabalhadores.

Mais que legislações favoráveis, é essencial um esforço conjunto entre Estado, empresas e trabalhadores que leve em consideração as demandas e necessidades dos estafetas, bem como sua posição política e organização diante da realidade enfrentada. Atualmente, prevalecem os interesses das plataformas, persuadindo parte da categoria a preferir permanecer na informalidade, sustentando o léxico empresarial e o sistema desigual e exploratório de trabalho.

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