Os emigrantes são ignorantes, irresponsáveis e/ou racistas?

Apesar dos discursos grandiloquentes do 10 de junho, temos falhado rotundamente no que diz respeito à diáspora.

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Nunca os portugueses da diáspora se mobilizaram tanto para um ato eleitoral. Chegaram ao Centro de Congressos de Lisboa 333.520 votos – quase o dobro dos das legislativas de 2022 (175.000) – o que perfaz uma participação de 21,56%. Todavia, 36,68% desses boletins (122.327) foram anulados, sobretudo devido à não inclusão da fotocópia do cartão de cidadão, e 0,56% estavam em branco (1866). Uma leitura recorrente é que uma franja significativa da emigração sofreria de iliteracia crónica e não entende as instruções de voto.

Foram ainda contabilizados 61.039 boletins válidos para o Chega (18,30%), 55.986 para a AD (16,79%) e 52.471 para o PS (15,73%). Uma interpretação comum conclui que os portugueses residentes no estrangeiro – que mais do que ninguém deveriam estar precavidos contra o populismo e a xenofobia – plebiscitaram a extrema-direita, como forma de protesto ou por convicção. No primeiro caso, seriam irresponsáveis, no segundo seriam racistas. Os que não exerceram o seu direito de voto teriam sido coniventes.

De forma surpreendente para quem vive cá dentro, o Chega obteve dois mandatos à custa do PS, tendo a AD mantido um deputado no círculo de Fora da Europa. Para quem segue de perto as comunidades, tais resultados confirmam o que já há algum tempo se temia. Há meio século que a diáspora é um dos parentes pobres da democracia. A subida do número de eleitores também é um sintoma de um mal-estar estrutural que se converteu em voto vindicativo. Mutatis mutandis, como escreveu Steinbeck a propósito da Grande Depressão, “na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima”. Embora se possa dizer que votaram no Chega “apenas” 61.039 dos 1.546.747 inscritos, ou seja 3,9% do universo eleitoral, e que foram sobretudo os votos oriundos da Suíça e do Brasil que ditaram o desfecho, o certo é que o partido de André Ventura foi o mais votado além-fronteiras.

Não se devem trocar princípios por revoltas, por mais legítimas que sejam. Os valores da democracia não são negociáveis. Tal não impede que não se procure entender os motivos subjacentes a este voto. Explicar não é aprovar. Ora, de modo geral, o espaço público nacional (media e redes sociais) não parece muito inclinado em tirar as devidas ilações, prática em que os principais partidos já são useiros e vezeiros. Em 2022, depois do Tribunal Constitucional mandar repetir as eleições no círculo da Europa, juraram a pés juntos que iriam proceder a uma reforma eleitoral. Continuamos à espera! Nos últimos anos, constavam ainda do rol das promessas a experimentação do voto eletrónico e a abolição das propinas no ensino do português, entre outras. Umas foram despudoradamente renegadas, outras adiadas para as calendas gregas…

Desde os anos 80, o arco da governação quase sempre se esquiva a apresentar resoluções concretas, limitando-se a reciclar, legislatura após legislatura, as mesmas propostas de caráter geral. A seu descargo, os candidatos pela diáspora têm tão pouco peso no hemiciclo que lhes é quase impossível comprometer-se com medidas tangíveis. Mas serão eles verdadeiramente representativos do seu eleitorado? Segundo um recenseamento efetuado pelo Lusojornal, nove dos 17 partidos que agora concorreram na Europa nem sequer acharam por bem apresentar um candidato residente fora do território nacional. Por seu turno, PS e PSD – que até este escrutínio se repartiam os mandatos – apresentam quase sempre os mesmos cabeças de lista há mais de 20 anos! As estruturas nacionais nem se dignam fazer campanha nos principais núcleos da diáspora. Enquanto isso, o Chega marca presença nas redes sociais e desenvolve um trabalho de proximidade.

Por seu turno, o eleitorado das comunidades continua a confrontar-se com um paternalismo bacoco por parte de elites que insistem em discursos nacionalistas sobre a portugalidade e os “bons emigrantes”. A 9 de janeiro de 2018, fui um dos cinquenta signatários do manifesto “Nem bons, nem maus”, publicado na edição digital do Le Monde, da autoria do historiador Victor Pereira e do jornalista Hugo dos Santos. Os signatários insurgiam-se contra a “instrumentalização da história e da memória” da emigração portuguesa – desta feita por certos media franceses – para melhor estigmatizar outras minorias. Independentemente dos méritos respetivos, distinguir determinadas migrações como paradigma dos “bons emigrantes” constitui, em filigrana, uma forma de acicatar a xenofobia relativamente a outras. E as extremas-direitas dos países de origem e de residência são exímias em manejar tais artifícios de propaganda.

Os emigrantes portugueses que agora plebiscitaram a extrema-direita – e todos os outros que se abstiveram ou tiveram os seus votos anulados – são ignorantes, irresponsáveis ou racistas? Alguns são-no por convicção, é inegável, como acontece em Portugal. Outros materializaram, de forma imprudente, um descontentamento estrutural com quem tem governado desde o 25 de Abril. Tiveram de sair do país porque não havia lugar para uma vida decente e continuam a esbarrar com um conjunto de discriminações não resolvidas (serviços consulares, língua, autoridade tributária, exercício do direito de voto, representatividade, etc.). É ainda de ressalvar que uma maioria não escolheu o Chega e muitos outros não votaram pela inoperância do processo eleitoral, dado que milhares de boletins continuam a não chegar aos destinatários em tempo útil.

André Ventura venceu as eleições além-fronteiras. Tais resultados também demonstram que, apesar dos discursos grandiloquentes do 10 de junho, temos falhado rotundamente no que diz respeito à diáspora. O mais contraproducente é que este voto de protesto corre o risco de agudizar a discriminação a que tem sido votada pelos partidos com sede parlamentar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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