Costa e Marcelo, dois jogadores à altura um do outro

Na hora da despedida, a coabitação até parece ter sido imaculada. Não foi. Houve tensões, desmentidos, picardias e acusações de falta de bom senso.

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As palavras que são usadas publicamente para classificar o relacionamento que os presidentes da República e os primeiros-ministros vão mantendo enquanto estão em funções mereciam ser estudadas. No futuro, a carga semântica que cada protagonista decidir colocar na definição poderá muito bem ajudar a contar a história da coabitação entre os dois palácios.

Na sua Autobiografia Política, Cavaco Silva referiu-se a Mário Soares, no segundo mandato, como "agente da oposição" (uma das "forças de bloqueio" que, nesses tempos de maioria absoluta, atrapalhavam a governação). Reconheceu também que à "magistratura de influência" exercida num primeiro momento viria a seguir-se uma "magistratura de interferência".

Pedro Santana Lopes e Jorge Sampaio tiveram um relacionamento "cordial", como disse Santana, até que o segundo se fartou do primeiro e usou a "bomba atómica".

Entre 2005 e 2011, José Sócrates e Cavaco Silva evoluíram de uma "cooperação institucional e estratégica" para uma "magistratura actuante".

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa escolheram as expressões "solidariedade institucional" e "solidariedade nacional" para descrever a relação que mantiveram ao longo de oito anos. "Dificilmente será possível encontrar outro período em que as relações tenham seguido de forma tão fluida, cooperativa e solidária", acrescentou o primeiro-ministro cessante, subindo a fasquia para o seu sucessor.

Na hora da despedida, a coabitação até parece ter sido imaculada. Não foi. Como seria de esperar, houve tensões, desmentidos, picardias e acusações de falta de bom senso, como quando Costa responsabilizou Marcelo por mais uma "crise política irresponsável" ao ter decidido pela dissolução “totalmente despropositada e desnecessária” do Parlamento.

Houve coligações negativas aprovadas por Belém que o Governo mandou para fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional.

Houve irritações com nomes de ministros a saírem na imprensa antes de terem passado por Belém, remodelações forçadas pela Presidência e demissões negadas.

Houve muita convergência a bem das instituições e houve divergências resolvidas de forma mais ou menos saudável.

Nada disso é extraordinário ou invulgar. O que Marcelo e Costa trouxeram de novo — e que visivelmente faltou noutros momentos da coabitação entre palácios — foi a certeza de serem dois jogadores que estavam à altura um do outro, na capacidade de antecipação, no nível do jogo político e na habilidade.

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