Morgado do Quintão: Uma herdade a agitar as águas — e os vinhos — do Algarve

Quer mostrar que o Algarve não é só praia. Também é Negra Mole, arte e receitas tradicionais de família. Por ano, já recebem cerca de 10 mil enoturistas em Lagoa, mas faltam portugueses.

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Vista aérea de uma das casas do Morgado do Quintão, no Algarve Direitos Reservados
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A fotógrafa Eva Díez e a sua cadela, Duna, foram as últimas hóspedes da residência artística do Morgado do Quintão, no Algarve. Aliás, uma das fotografias que a artista galega tirou durante a estadia na herdade em Lagoa, a dez quilómetros do mar, acabou por se transformar no rótulo do último Branco Vinhas Velhas 2022, lançado no final de Fevereiro na galeria Salgadeiras Arte Contemporânea, em Lisboa.

A imagem do rótulo não é propriamente “comercial”, nem foi “feita para vender vinho”, comenta Filipe Caldas de Vasconcellos, produtor e proprietário da quinta. “São umas águas paradas”, descreve. “A artista estava estagnada criativamente e [a fotografia] conta a história de ter chegado [à herdade] e ter encontrado uma forma de mobilizar a estagnação que estava a sentir.”

O Morgado do Quintão também tem marcado a diferença numa região onde, até há algum tempo, as águas estiveram paradas. “Quando peguei no projecto, deparei-me logo com esta percepção que as pessoas têm do Algarve, criada pelos media e pelo sector hoteleiro, em que não há mais nada além daquela linha costeira”, afirma. “Na verdade, há toda uma vida e toda uma vivência de um Algarve do campo que as pessoas desconhecem e nós queremos mostrar isso.”

Em 2017, depois da morte da mãe, a artista plástica e professora universitária Teresa Caldas de Vasconcellos, Filipe decidiu pegar na quinta da família, fundada em 1810 pelo primeiro conde de Silves, um dos seus antepassados, e criar um “negócio sustentável”. Recuperar os 15 hectares de vinhas velhas foi uma das prioridades, sobretudo a de ressuscitar a casta autóctone, a Negra Mole, com a ajuda da enóloga Joana Maçanita.

O renascimento

Noutros tempos, tentou convencer a mãe a arrancar a casta algarvia, na altura praticamente esquecida, e plantar Touriga Nacional, mais em voga. Felizmente, Teresa não foi na conversa. “A família foi sempre apostando naquela casta e isso foi fundamental”, confessa. “É uma casta com uma plasticidade gigante, que nos permite fazer desde claretes a espumantes e que está muito alinhada com as tendências de mercado.”

Desde essa altura, o Morgado do Quintão tem vindo a aumentar a produção de vinho todos os anos (em quatro anos passaram de duas mil para 20 mil garrafas), com a Negra Mole como estandarte e com vinhos até na carta de “restaurantes em Nova Iorque”, orgulha-se Filipe.

Hoje, fazem parte daquilo que considera o “renascimento dos vinhos algarvios”, muito impulsionado pelo enoturismo crescente na região. “Acaba por ser uma fonte de receita muito importante para nos ajudar a financiar o investimento que estamos a fazer nas vinhas”, explica o produtor que em 2021 decidiu plantar outras castas como a Arinto e Malvasia, além das tradicionais algarvias (Negra Mole, Crato Branco e Castelão).

Durante décadas, a herdade foi “puramente agrícola”, conta. Com o passar dos anos, a família aproveitou a propriedade para passar férias e, com a aposta recente no enoturismo, a combinação “agricultura e turismo” veio para ficar.

Pormenor do alojamento no Morgado do Quintão Direitos Reservados
Uma das casas do Morgado do Quintão Direitos Reservados
O bem-estar dos hóspedes é tido em conta na hora de o Morgado do Quintão receber Direitos Reservados
Os vinhos Morgado do Quintão têm assinatura da enóloga Joana Maçanita Direitos Reservados
Vista sobre a vinha, na propriedade do Morgado do Quintão Direitos Reservados
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Pormenor do alojamento no Morgado do Quintão Direitos Reservados

Piscinas e privacidade

Com mais de 60 hectares — que incluem também um olival e um amendoal —, há espaço suficiente para que os hóspedes tenham privacidade e, já agora, a sua própria piscina privativa.

A herdade tem três casas para alugar, todas com capacidade para até oito pessoas e preços que começam nos 300 euros por noite. A primeira a ser recuperada foi a Casa da Amêndoa, construída pela mãe de Filipe nos anos 20, e a primeira a abrir-se aos hóspedes da propriedade. Além da Casa Buganvília, com persianas naturais da planta, também há a Casa da Entrada, onde antes vivia o caseiro da quinta, a mais isolada de todas.

“A ideia é que as pessoas tenham o seu espaço e que gozem de uma certa privacidade, com casas afastadas umas das outras, mas com a opção de conviverem na casa principal, onde as provas acontecem”, explica Filipe.

A casa principal, com uma biblioteca, móveis antigos e relíquias da família, serve de recepção às provas de vinho, a actividade mais procurada da quinta. Por ano, Filipe estima receber cerca de 10 mil pessoas, a maioria estrangeiros. “Os portugueses quando vão para o Algarve vão para a praia, mas os estrangeiros que visitam o Algarve estão muito despertos para a gastronomia e os vinhos vêm atrás.”

As provas premium acontecem de segunda a sexta-feira, com direito a uma visita às vinhas e uma degustação de queijos e enchidos de produtores locais (42,50 euros). Também há uma prova especial de espumantes de Negra Mole (55 euros), com ostras locais da ria de Alvor, e almoços e jantares por marcação.

Gastronomia e arte

Um dos objectivos de Filipe é mudar a maneira como se olha para o Algarve, sobretudo a nível gastronómico. “Há uma injustiça para esta região que é vista como uma coisa, mas que tem muito mais para dar”, considera.

Desde o mês passado, organiza a série de eventos gastronómicos mensais “À Mesa”, com receitas algarvias preparadas pelo chef Sérgio Gama, que já passou pelo famoso restaurante dinamarquês Noma. “As receitas são as minhas receitas de família, dos meus avós, numa partilha mais pessoal, mais íntima, que não é a oferta tradicional de um restaurante”, explica.

No Morgado do Quintão, os almoços acontecem numa mesa de madeira corrida Rui Gaudêncio
Uma oliveira com dois mil anos é palco desses almoços no Morgado do Quintão Rodrigo Cardoso / Direitos Reservados
Filipe Caldas de Vasconcellos, produtor e proprietário do Morgado do Quintão, no Algarve Miguel Madeira
A tal oliveira que é um 'postal' do Morgado do Quintão Rui Gaudêncio
A partir de 2017, o produtor Morgado do Quintão atirou-se à missão de recuperar 15 hectares de vinhas velhas e ressuscitar a casta autóctone Negra Mole Rui Gaudêncio
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No Morgado do Quintão, os almoços acontecem numa mesa de madeira corrida Rui Gaudêncio

Os almoços acontecem numa mesa de madeira corrida, debaixo de uma oliveira com dois mil anos, que Filipe acredita ter potencial para ganhar o prémio de árvore mais bonita da Europa.

É debaixo da mesma oliveira que em Outubro acontece o grande evento cultural da herdade, uma espécie de festival aberto ao público para celebrar as vindimas, por onde já passaram músicos como Carminho, Mário Laginha ou Janeiro.

“É sempre muito especial quando o vinho sai do seu universo e tem conversas com outras formas de expressão”, comenta Filipe, que todos os anos abre a casa a artistas para residências que às vezes resultam em rótulos de garrafas.

Este ano, o festival deverá repetir-se, com uma “surpresa” e “outro formato”, adianta, mas com a mesma ligação à arte. Em anos anteriores, chegaram a receber 600 pessoas e também isso pode ajudá-los na grande missão: “Conquistar a fatia enorme de portugueses que desconhecem os vinhos do Algarve.”

A Fugas esteve alojada a convite do Morgado do Quintão

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