Morgado do Quintão, uma marca do Algarve a dar cartas nos EUA

Filipe Vasconcellos quis arrancar vinhas de Negra Mole. A mãe não deixou. Anos depois, é convidado de um festival com fama nos EUA para apresentar vinhos criados com a casta algarvia. Merece reflexão.

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Videiras de Negra Mole no Morgado do Quintão, no Algarve Rui Gaudêncio

Já se sabe que uma boa história vende garrafas. E como o conceito passou a ser um trunfo de marketing, há quem dê piruetas para arranjar uma narrativa que cative jornalistas e consumidores. Duas ou três barricas esquecidas, aquele lote de garrafas que desapareceu das contas mas que um dia ressuscitou num canto muito fresco da adega, umas videiras muito velhas que estavam cobertas por silvas, já vimos tudo. Ou quase tudo, porque a imaginação é o que se sabe.

O Morgado do Quintão, no Algarve, tem ingredientes de sobra para construir uma bela história, mas não precisa de piruetas. Nasce no início do século XIX, permanece na mesma família, tem solos perfeitos (areia), está entre o mar e a serra de Monchique, conseguiu sobreviver à loucura de betonização da região, tem vinhas com mais de 70 anos e foi, nos tempos mais recentes, gerido por uma mulher — Teresa Caldas de Vasconcellos — que, não sendo uma expert em vinhos (era artista plástica), pensava bem.

Diz-nos o filho Filipe: “Quando eu e os meus irmãos começámos a pensar na gestão da quinta — há quase 20 anos — a nossa ideia era arrancar as vinhas velhas pouco produtivas e cujas uvas iam para a Adega Cooperativa de Lagoa e, em substituição, plantar o que estava na moda, entre castas nacionais e estrangeiras. Mas a minha mãe disse-nos o seguinte: ‘Não se arranca nada. Se estas castas estão aqui há tantas décadas, por alguma razão deve ser. E, além disso, não existem nas outras regiões’.”

A tese de Teresa é de belo efeito e ajuda a vender, certo. A origem do sucesso dos vinhos do Morgado do Quintão, lançados em 2016, deve-se à visão da mãe, certo. Mas, mais importante do que isso foi o talento que, nos últimos anos, toda a família e a enóloga Joana Maçanita usaram para criar uma linha de vinhos com perfis bastante diferentes, mas quase todos nascidos da desprezada Negra Mole. Uma ideia de se tirar o chapéu.

Repare-se que, com uma única casta e ainda por cima destrambelhada — se calhar é aqui que está a sua virtude —, o Morgado do Quintão oferece-nos tintos, rosés, blanc de noir, espumante, clarete e palhete, loucura esta que implica passar três vezes pelas cepas na mesma vindima (para colher uvas com diferentes estados de maturação). Haverá algum outro produtor algarvio a fazer tanto com uma só casta? Pode haver, mas nós não conhecemos. E como Joana Maçanita é irrequieta (coisa de família, já se sabe), as experiências não ficarão por aqui.

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Oliveira com 2000 anos no Morgado do Quintão (Algarve) e as vinhas como pano de fundo Rui Gaudêncio
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Vinhas da casta Negra Mole no Morgado do Quintão, produtor algarvio de Lagoa Rui Gaudêncio

Agora, a notícia mais fresca é que a tal visão e o tal talento acabaram de atingir um patamar de excelência em Fevereiro passado. O Charleston Wine + Food é um festival de referência nos EUA, pelo facto de explorar os conceitos de terroir (no vinho e na comida), o networking em todo o mundo e, claro, a sustentabilidade.

Entre os vários programas paralelos, os seus promotores criaram, este ano, o Wine in The Sand, que talvez se deva traduzir por vinhos feitos em regiões com solos de areia. Foram convidados produtores de sete regiões vitícolas: da Sicília (Itália), de Santorini (Grécia), da Macedónia, das regiões australianas de Magaret River e da Tasmânia e, do nosso Algarve, o Morgado do Quintão.

“É evidente que eu reconheço o valor dos nossos vinhos — são nossos, claro... — ​e sei que o Algarve vai dar muito que falar, desde que aqui se façam vinhos algarvios, mas nunca sonhei que seria possível, um dia, ir aos EUA, a uma feira destas, convidado, para mostrar vinhos de Negra Mole. Nunca imaginei que pudesse haver interesse dos participantes de um festival —​ gente todo o mundo — por uma casta que só deve entrar nos radares de Masters of Wine. Durante dois ou três dias, eu, - digo isso a rir, mas com orgulho -, senti-me como um embaixador da casta Negra Mole”, salienta-nos Filipe Vasconcellos.

Claro que o facto de ter sido convidado a ir ao festival tem a ver com o trabalho que desenvolveu nos últimos anos nos EUA, onde já factura cerca de 30 mil euros com vinhos quase todos de Negra Mole. Nada chega por acaso.

E as perguntas que devem ser feitas são estas: se Teresa tivesse seguido o conselho dos filhos e arrancado as vinhas, o Morgado do Quintão teria sido convidado para o tal festival dos EUA? Se em vez de Negra Mole tivesse metido Syrah, Chardonnay, Petit Verdot (essa coisa linda) ou até as nossas tourigas, o Morgado do Quintão chamaria a atenção de alguém, lá fora e cá dentro?

A resposta parece elementar. E é por isso que na propriedade de Lagoa se planta mais Negra Mole, mais Crato Branco (material das próprias vinhas velhas) e outras castas que sempre estiveram nas vinhas do Algarve (Arinto, Castelão, Trincadeira ou Tinta Miúda).

O Morgado do Quintão é muito mais do que uma narrativa desenhada num gabinete de marketing. Ou melhor, é uma narrativa bonita (da quinta em si aos rótulos com criações de Teresa Caldas de Vasconcelos e passando pelos eventos musicais que organiza), saborosa, com identidade e bem-sucedida.

Tudo à conta da Negra Mole, que, ainda por cima, não nos leva o couro e o cabelo (os preços dos vinhos andam entre os 17 e os 55 euros). Mais um caso que deveria dar que pensar aos produtores nacionais.

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