Pode ser-se judeu e português?
Mostrei o meu cartão de cidadã a uma pessoa que me pareceu ser o presidente da mesa de voto. Reparei que ele olhava com atenção para o meu cartão, mas foi com espanto que o ouvi dizer “Não gosto!”
A resposta à pergunta do título parece óbvia, mas será assim para todos?
No dia 10 de Março, fui cumprir o meu dever de cidadã ao Pavilhão Celorico Monteiro, em Miraflores. Estava imensa gente à espera para votar em filas intermináveis, o que me pareceu um bom sinal, aliás confirmado uns dias depois pelo número mais baixo de abstenção a nível nacional.
Cheguei assim finalmente à mesa de voto na fila 17 onde naturalmente mostrei o meu cartão de cidadã a uma pessoa que estava de pé e me pareceu ser o presidente da mesa. Reparei que ele olhava com atenção para o meu cartão, mas foi com espanto que o ouvi dizer “Não gosto!” Como não percebi de que é que ele não gostava, perguntei: “Não gosta de quê?”
A resposta foi imediata. “Não gosto do nome e de andarem por lá a fazer massacres”, numa evidente manifestação de ódio, culpando-me pelo que se passa em Gaza. Respondi-lhe lembrando que sou portuguesa e estava a votar como tal e que ia apresentar uma queixa contra ele por estar a infringir a regra número um deste dia que é a neutralidade relativa à identidade religiosa e política dos eleitores e em consequência da própria mesa que, aliás, se manteve impávida e serena…
Fui votar e na volta o indivíduo voltou à carga, questionando-me: “Não tenho direito a não gostar de um nome ou de uma pessoa?” Respondi-lhe que tinha, sim, a nível pessoal, mas, ali, a obrigação dele era engolir e calar. Tornei-lhe a dizer que ia apresentar queixa, o que já fiz à Comissão Nacional de Eleições e não vou ficar por aqui.
Este episódio pode parecer insignificante a muitos leitores deste jornal, que eventualmente desvalorizarão o seu significado e importância, como acontece frequentemente. Mas é um erro, e um erro grave. Culpar pessoas pela sua religião, etnia ou cor, por acontecimentos que não causaram e com os quais até podem não concordar, é um crime de ódio que neste meu caso tem um nome: anti-semitismo.
Não sou uma pessoa que vê anti-semitismo em todo o lado. Mas o facto é que hoje assistimos à expressão do mesmo de forma cada vez mais violenta na Europa através da importação do conflito israelo-palestiniano. Seja por esse motivo ou por outro, o certo é que um dos principais, senão os únicos, alvos da violência que na actualidade não poupa quase nenhum país do norte, do centro e do ocidente europeu recai regulamente sobre os judeus – e, neste momento, sempre de consciência tranquila, porque em nome da tragédia palestiniana, esquecendo, e até nalguns casos festejando, os massacres do 7 de Outubro.
Portugal não é um país anti-semita, nem as suas instituições o são, e a violência não é uma característica da sua população. Mas o anti-semitismo não se revela apenas através da violência, mas de múltiplas formas, nomeadamente na dificuldade de reconhecimento da identidade portuguesa a pessoas de religião judaica, tornando-as cúmplices por tudo o que se passa em Israel, como se, para além de judeus, fossemos também israelitas…
Confesso que o que se passou comigo no dia das eleições me fez recuar a um passado que gostaria de ver enterrado. Nasci numa geração do pós-guerra que viveu durante cerca de duas ou três décadas numa paz relativa, marcada também pelo silêncio antijudaico devido ao Holocausto. Hoje, não só a paz mas também esse silêncio acabaram, fazendo-se comparações absurdas e banalizando a Shoá para justificar o injustificável.
Na véspera dos 50 anos do 25 de Abril que nos trouxe a liberdade e a igualdade de direitos, e para responder à pergunta inicial deste texto, eu diria apenas que, em Portugal, ser judeu, muçulmano ou hindu é apenas outra forma de ser português.