Paula Coutinho, pioneira da neurogenética

Documentário sobre Paula Coutinho é exibido no Dia Internacional da Mulher, na RTP2, às 20h35. Era intensa, inspiradora, temperamental e intransigente, como são tantas vezes as pessoas excepcionais.

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A neurologista Paula Coutinho Arquivo pessoal de JS
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A neurologista Paula Coutinho (1941-2022) foi uma mulher que quebrou barreiras, considerada vanguardista na neurologia, num mundo, à época, predominantemente masculino. A sua principal referência e mentor foi Corino Andrade, neurologista que descobriu a paramiloidose em famílias das Caxinas, e de quem foi herdeira científica. “‘pescada’ nas aulas práticas de Neurologia e levada para o serviço do Dr. Corino de Andrade”, no Hospital de Santo António (HSA), no Porto, em 1965, quando ainda frequentava a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Foi a primeira neurologista a desenvolver o “pensamento genético” na doença neurológica, o que faz dela, de facto, a pioneira da neurogenética em Portugal.

Com Corino Andrade, viajou pelas ilhas dos Açores, em Janeiro de 1976, estudando aquela que viria a ser chamada doença Machado-Joseph (DMJ). Demonstrou que esta era uma doença única, com sintomas e idade de início muito variáveis, apesar de ter sido descrita como três doenças diferentes em descendentes de açorianos nos Estados Unidos. Mais tarde, viria a mostrar que a “doença açoriana” estava, afinal, presente também no continente. Para logo, nos anos 80, começar a ser encontrada um pouco por todo o mundo.

Sabe-se agora que a DMJ é a ataxia (doença que afecta o equilíbrio, a fala e a coordenação) mais frequente, entre as quase 50 ataxias hoje conhecidas com hereditariedade dominante (geralmente afectando várias gerações). Enfrentando figuras eminentes e monstros sagrados da neurologia internacional, defendia convictamente que era possível identificar esta doença em muitas famílias, usando apenas critérios clínicos, que ela própria definiu. Isto deu motivo, ao longo de muitos anos, a despiques épicos e polémicas inflamadas, quase sempre amigáveis. Intuiu até que três famílias mais antigas, descritas com outros diagnósticos, teriam na realidade a DMJ, o que veio a confirmar-se assim que o gene foi descoberto e um teste genético se tornou possível.

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A equipa do Serviço de Neurologia do Hospital de Santo António (no Porto) em 1967, em que Paula Coutinho era a única mulher Arquivo pessoal de JS

A sua tese de doutoramento, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, consistiu na definição clínica e anatomopatológica da DMJ. Com ela viria a ganhar o Grande Prémio Bial de Medicina de 1992. Todo o seu trabalho científico, inovador e de grande qualidade, contribuiu para a importante reputação internacional que alcançou.

Um rastreio ímpar por Paula Coutinho

Em particular, conduziu um rastreio sistemático de ataxias hereditárias e paraparesias espásticas na população nacional, ao longo de mais de 12 anos. Foi um esforço imenso, para o qual se rodeou de especialistas de diversas áreas, da saúde púbica e epidemiologia à genética laboratorial. Este estudo é ainda apontado como ímpar e abundantemente citado na literatura científica. Os seus dados foram um recurso valiosíssimo para a descoberta de novos genes, e levaram ao aumento do conhecimento clínico e epidemiológico naquelas doenças. O impacto deste rastreio ainda hoje se faz sentir na investigação científica e na prática clínica.

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Corino Andrade e Paula Coutinho nos Açores, em Janeiro de 1976 Arquivo Pessoal de JS

Entre 1971 e 74, trabalhou na Suíça. Foi assistente de Neuropatologia na universidade e neurologista no Hospital Cantonal de Genebra, Suíça, para onde foi “cheia de medo, ver mundo, e onde aprendeu a não parar no diagnóstico e tentar encontrar soluções possíveis para cada doente, mesmo que sem solução terapêutica”​. Aí foi próxima do chamado “grupo de Genebra de exilados”, entre os quais Medeiros Ferreira e Maria Emília Brederode Santos, de quem se tornaria amiga para toda a vida. Em 1974, regressou ao HSA, onde continuaria o seu trabalho clínico e científico, no Serviço de Neurologia e no Centro de Estudos da Paramiloidose (hoje Unidade Corino Andrade). Foi professora de Neurologia no ICBAS/HSA, de 1981 a 1998.

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Paula Coutinho a ver uma doente de paramiloidose no Japão, em 1987 Arquivo Pessoal de JS

A falta de perspectivas de progressão na carreira levou-a, em 1998, a aceitar o desafio de criar o Serviço de Neurologia do novo Hospital de São Sebastião (HSS), em Santa Maria da Feira, onde viria também a dirigir o Departamento de Medicina.

Foi co-fundadora, em 1992, e investigadora da Unidade de Investigação Genética e Epidemiológica em Doenças Neurológicas (Unigene), do Instituto de Biologia de Molecular e Celular (IBMC), hoje integrado no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto. Aí foi também neurologista-principal do Centro de Genética Preditiva e Preventiva do IBMC.

Foram-lhe prestadas homenagens no HSS (2003), na Câmara Municipal de Vale Cambra (2014), concelho de onde era natural, e no i3S (2016). Um ano após o seu falecimento, recebeu a homenagem da Sociedade Portuguesa de Doenças do Movimento e a homenagem, em sessões simultâneas, das três principais instituições nacionais em que trabalhou (HSA, HSS e i3S).

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Jorge Sequeiros e Paula Coutinho numa homenagem à neurologista em 2016 no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto: os dois trabalharam juntos muitos anos I3S

Adorava ensinar Neurologia, tendo formado múltiplas gerações de clínicos e investigadores que hoje continuam o trabalho por ela iniciado ou o estenderam a outros campos de actividade e do conhecimento.

Extremamente dedicada aos doentes

Dotada de inteligência fina, inquisitiva e perseverante, tinha um faro clínico raro e uma perspicácia diagnóstica invulgar. Era extremamente dedicada à maioria dos seus doentes. Um dos seus grandes prazeres eram os estudos de campo, nos centros de saúde e em visitas aos doentes nas suas casas, nas ilhas e no continente. Promoveu o levantamento de famílias com paramiloidose e o seu aconselhamento genético. Fomentou a formação na medicina geral e familiar e a criação da valência de paramiloidose” em centros de saúde, nas regiões mais afectadas. Apoiou as associações e as pessoas com paramiloidose e DMJ, conseguindo o acesso a medicação gratuita que hoje mantêm.

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Paula Coutinho na ilha das Flores a visitar famílias de doentes de Machado-Joseph Arquivo pessoal de JS

Era uma mulher intensa e cativante, sempre inspiradora, temperamental, impiedosamente crítica e intransigente, como são tantas vezes as pessoas excepcionais. Acreditava nos outros e sucedia deixar-se abater (nunca por muito tempo) por pessoas ou situações menos agradáveis. Detestava a ligeireza, mas, acima de tudo, a presunção e a pompa. Tinha também pavor a aviões, que nunca a abandonou, apesar das inúmeras e longas viagens que fez. Em particular, aos pequenos bimotores da SATA e ao temível Aviocar da Força Aérea que a levou entre ilhas, com o Dr. Corino à sua frente a citar Platão. Deixou muitas vezes de fumar, quase sempre por pouco tempo, o que normalmente não ajudava a amenizar o seu feitio.

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Gabinete da neurologista Paula Coutinho Arquivo Pessoal de JS

Na realidade, nada na vida a deixava indiferente. Separava bem o trabalho dos outros lados da vida, de que nunca descurou os pequenos prazeres. Ao fim de um dia intenso, terminada uma reunião científica ou o trabalho de campo, rodeava-se de colaboradores e amigos a beber um gin-tónico, a sua bebida favorita, que só mais tarde se tornou moda. Antes de uma boa refeição, de preferência simples e despretensiosa. Sempre em animadas conversas, a que não faltava uma boa dose de ironia e alguma má-língua, tornando-as mais vivas e apetecíveis. Elegia as cozinhas regionais, mas também outras gastronomias como a tailandesa, em particular, à condição de favoritas. E sentia saudades da raclette suíça. Gostava também de cozinhar e experimentar fazer novos pratos.

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Paula Coutinho junto ao local onde foi plantada uma magnólia em sua homenagem em 2016 i3s

Cresceu numa casa cheia de livros policiais e desenvolveu-se ao correr de raciocínios dedutivos ou indutivos, conforme os detectives, a razão por que escolheu a Neurologia. Apreciava westerns e bom cinema de autor, que nem sempre coincidiam. Era muito afeiçoada a cães e à jardinagem. As ilhas dos Açores, todas diferentes, todas belíssimas, eram outra das suas grandes paixões, em especial as Flores. Seguia a fórmula 1, como fã de Ayrton Senna. Gostava e sabia muito de futebol, mas era sobretudo adepta emotiva do Futebol Clube do Porto, comentando as últimas aquisições e tácticas de jogo (ou a falta delas). A sua forma de pensar, qualquer que fosse o assunto, não deixava ninguém indiferente.

Um documentário sobre a sua vida e obra (Era Bonito Vê-la Pensar, 2023) inclui excertos de vídeos de que fora protagonista, bem como testemunhos de colegas, antigos estudantes e amigos de Portugal aos EUA, Canadá, Brasil, Reino Unido, França e Japão. É exibido no dia 8 (Dia Internacional da Mulher), na RTP2 (20h35).

Médico geneticista, professor emérito da Universidade do Porto

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