Ivandro, o Trovador: cantigas à prova de escárnio

Uma das vozes mais ouvidas em Portugal faz uma bela estreia em longa duração – demasiado longa.

Foto
Ivandro tem em Trovador o seu álbum de estreia

As notícias de um “disco de estreia” de Ivandro foram manifestamente exageradas. Trovador chegou às lojas ao cabo de, contas feitas, praticamente uma década a preparar-se para o estrelato. Amealhou um fio de êxitos mais do que respeitáveis, além das participações em concursos televisivos (Ídolos 2015, Got Talent 2017, Festival da Canção 2023). Ajudou a ressuscitar os D’zrt. Foi o artista português mais ouvido em 2022 no Spotify, com os dois maiores hits desse ano. Quando já se fez trinta por uma linha, o que fica por estrear?

Lembra outro caso do R&B, lá fora: quando a premiadíssima H.E.R. editou o seu “primeiro álbum”, em 2021, já tinha em carteira quatro Grammys e um Óscar. Embalar um punhado de canções sólidas e tratá-lo como um cartão-de-visita – manipulações temporais à parte – é coisa de que as indústrias da pop nunca vão abdicar. E é coisa que – rara a oportunidade de o dizer – fazem bem. Cativar a atenção das massas, principalmente quando está outra tendência qualquer à distância de um deslize de polegar, é bom presságio de vir a ser a próxima grande cena. Nesse e só nesse aspecto, o músico prega uma rasteira a si próprio, ao testar os limites de concentração do ouvinte: tem 66 minutos para ouvir a poesia de Ivandro?

O pontapé de saída, If u love me, é um seminário em arranjos de voz solo: laminar cada harmonia, movimentando-as entre a primeira linha e o pano de fundo. É de um bom gosto iniludível, à maneira de um Ty Dolla $ign, que ornamenta e harmoniza não por vício, mas pela beleza do pormenor e do plano geral. A bossa nova que dá título ao disco, bem no finalzinho, é um lamento quase chorado (estilo Sade) de um poeta a quem as palavras também falham: “Ela ficou tão triste com as coisas que eu falei”, capaz de desarmar o coração mais empedernido. É pena estas canções serem vizinhas tão distantes, entremeadas por outras 19 faixas – que, nunca sendo menos do que competentes, arrastam-se por uma hora e picos de música sem grandes surpresas nem sobressaltos.

As ambivalências do amor dominam a primeira parte: tanto vai beber ao hip hop soul de uma Mary J. Blige em meados dos anos 90, como explora o R&B contemporâneo, mais nocturno e insular, de Summer Walker e 6lack. Do órgão que crepita em Com calma à batida mais fria de Barco, entre a bossa nova celebratória de Noite e a beleza mais convencional de Luz, Ivandro une tudo pelo poder das cordas vocais. Isso aplica-se também à segunda metade do álbum, dividida entre baladas e gingas; mais vaidosa, mas nunca altiva. “Não dá p’ra esquecer a guita/ quando viemos do nada”, verso da inegável Chakras, demonstra a empatia que respiram estas composições, com dedo de D’ay, Marcus Costa, Frankieontheguitar e outros magos do estúdio.

A longa duração do disco não põe em causa o bom controlo de qualidade (garante também de um bom número de reproduções em streaming, claro), mas, infelizmente, também acaba por diluir os momentos em que Ivandro se revela um verdadeiro artesão da melodia, como aqueles que abrem e encerram Trovador. Os convidados especiais do disco, de António Zambujo a Julinho KSD, de Marisa Liz a Slow J, parecem subscrever esse estatuto, ou, pelo menos, alinhar Ivandro numa rede estratégica, de máxima amplitude comercial. (E também da música independente vem a legitimação, como há duas semanas, quando Maria Reis – uma das melhores melodistas hoje – cantou Como tu, dueto de Ivandro com Bárbara Bandeira, na Sala Lisa, em Lisboa.)

Mais do que registar um ideal artístico já polido e inatacável, talvez o verdadeiro triunfo de um álbum de estreia seja agir como certidão de maturidade. Basta interromper Trovador com uma rápida audição de Por Ti (2017, o primeiríssimo single do artista) e regressar: é evidente, Ivandro está a alcançar a melhor versão de si. Se a próxima for um pouco mais económica com o seu tempo, tanto melhor.

Sugerir correcção
Comentar