A banca não é mal-amada

Não houve mérito na obtenção destes lucros, que decorreram de decisões exógenas à gestão bancária: o aumento das taxas de juro do BCE resultou num aumento significativo da margem financeira.

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Ricardo Arroja escreveu um artigo neste jornal intitulado “A mal-amada banca e o verdadeiro desafio”. Pela própria definição de “mal-amada”, o autor acredita existir na relação entre cidadãos e banca um amor não correspondido: a banca nutre uma paixão desmedida pelos cidadãos, mas estes maltratam-na, pois exigem mais regulamentação e contribuições. Não sei a que bancos Ricardo Arroja recorre, mas seria interessante partilhar as suas cartas de amor, já que as únicas que a maioria dos portugueses recebe é com notificações do aumento da prestação a pagar.

O desplante começa com uma afirmação de que ocorre uma “condescendência com a Caixa Geral de Depósitos — os lucros só são maus quando gerados no privado”. Na realidade, a maioria da esquerda entende que lucros são efectivamente importantes não só para a solvência, mas também para investimentos em novas actividades e serviços. Mas, sobretudo, entende que, num serviço disponibilizado por uma empresa pública, os lucros são preteridos numa escala de prioridades por outros objetivos mais relevantes: a disponibilidade desse serviço a todas as camadas da população, independentemente da sua origem e situação individual; a obrigatoriedade da abrangência de serviços; uma rede de segurança para todos; serviços mínimos gratuitos. Em suma, a prossecução de um bom serviço público suplanta o imediatismo do resultado financeiro. Por isso, entende-se o lucro no sector público não como um fim em si mesmo, mas como um resultado de tudo o que lhe antecede.

Afirmar o contrário — que uma empresa pública que presta um serviço deve actuar como mais um agente privado no mercado — é desvirtuar por completo a existência de um bem comum conseguido através do serviço público. Daqui resulta que a banca pública não pode agir como um privado. No caso concreto, se desse serviço resultarem lucros, tanto melhor: é oportunidade para investir na própria instituição, reduzir imparidades, baixar comissões, abrir o leque dos serviços, aumentar os trabalhadores ou reduzir taxas de utilização.

Ainda neste tópico, há não muito tempo, Ricardo Arroja escreveu outro artigo em que considerava uma injustiça a taxação acrescida dos lucros (os chamados windfall taxes). Para tal, usou a iniciativa do governo de Giorgia Meloni de taxar os lucros da banca resultantes da inflação como forma de colar a extrema-direita às propostas da esquerda (de resto, como faz agora com o Chega). Na realidade, a única coisa que se pode dizer é que um relógio parado acerta duas vezes por dia e que a procura séria de qualquer semelhança assemelha-se a uma caça aos gambozinos. Particularmente mais relevante é que estas comparações entre a esquerda e a extrema-direita protofascista só aparecem quando se atacam valores fundamentais dos liberais. Quando Meloni reduziu direitos das mulheres e dos trabalhadores, retirou apoios às famílias mais desfavorecidas ou removeu direitos de adopção a casais homossexuais, nada disse. Quando ousou tocar no sacrossanto mercado e nos lucros dos grandes grupos económicos, aí cai o Carmo e a Trindade — parece que a autocracia é irrelevante desde que não toque no sistema económico, inversão de valores que faria corar qualquer verdadeiro liberal.

Para sua alegria, o governo italiano sucumbiu à pressão dos mercados financeiros. Um dia após anunciar a medida, a cotação dos principais bancos italianos caiu e, para impedir uma perda de valor ainda maior, o governo decidiu colocar um tampão na proposta, tornando-a impotente. Este é um caso claro de síndrome de Estocolmo: o poder político e social é subjugado pelo poder económico, um ultraje à democracia e aos cidadãos, mas recebe aplausos de Ricardo Arroja.

A parte mais caricata de tudo isto é que os lucros da banca decorreram, em grande medida, da melhoria da margem financeira, isto é, das diferenças entre as taxas cobradas e pagas pela instituição. Para me explicar em termos liberais, não houve mérito na obtenção destes lucros. Não decorreu de investimentos num sector estratégico, por retornos em áreas mais arriscadas, melhorias de gestão ou aumentos da produtividade. Os lucros surgiram, essencialmente, por decisões exógenas à gestão bancária: o aumento das taxas de juro do BCE, que resultou no aumento de todas as outras e num aumento significativo da margem financeira, enquanto as taxas oferecidas por depósitos e produtos financeiros se mantiveram próximas de zero. Para quem defende a meritocracia de todas as formas e maneiras, parece-me que defender quem se aproveita dos méritos dos outros é uma contradição gritante.

Por fim, reduzir a intervenção bancária no período da crise do subprime à “salvaguarda dos depósitos dos aforradores nas instituições intervencionadas” é uma mensagem profundamente perigosa como é falsa. Os milhares de milhões colocados no sector bancário durante anos foram necessários para evitar uma ruptura que poderia ter decaído numa espiral sem fim, mas ignorar que também foram necessários para colmatar anos de más práticas e de gestão horrível é tapar o sol com a peneira. Impostos extraordinários sobre estes lucros é o mínimo que se exige como contrapartida pela manutenção do sistema bancário no período da crise — a menos que os liberais concordem com a velha frase “socialização dos prejuízos, privatização dos lucros”. Mas todas estas razões são casuísticas, porque a mais importante que o sistema económico deve servir a sociedade e não o contrário.

Acreditar que a economia, as instituições e os mercados funcionam perfeitamente como descrito nos manuais de micro e macroeconomia e que são paixonetas dos cidadãos não é pueril — é um delírio. O mundo é muito mais complexo do que simples igualdades matemáticas, encadeamentos lógicos simplistas e concepções irrealistas sobre a bondade do capital. Sabemos bem que a ilusão de um amor adolescente cega qualquer um, mas Ricardo Arroja já deveria saber mais. Talvez tenha um acesso de racionalidade quando se aperceber que o seu amor não é verdadeiramente correspondido.

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