O mito dos dois Estados

A solução de dois Estados independentes e soberanos dentro da Palestina transformou-se numa mera muleta do discurso político da comunidade internacional.

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Ibn Khaldun, um dos maiores pensadores árabes da Idade Média, referiu-se um dia à “gente feliz do futuro” num desejo prospectivo de tempos futuros mais favoráveis do que o presente vivido. Pode ser um exercício esperançoso, mas frustrante ao mesmo tempo, quando se está à espera de um amanhã mais radioso que nunca chegará. De certa maneira, é esta a condição dos palestinianos que, perante as reiteradas crises agudas do conflito, vão ouvindo vezes sem conta, pela boca dos líderes externos e bem-intencionados, a promoção da solução de dois Estados independentes.

Do que aprendi no terreno e com 25 anos de conhecimento acumulado sobre o tema, cheguei à conclusão fundamentada de que os palestinianos não acreditam naquele modelo e os israelitas não o aceitam. A verdade é que a solução de dois Estados independentes e soberanos dentro da Palestina se transformou numa mera muleta do discurso político da comunidade internacional. De Washington a Bruxelas, de Moscovo a Pequim, de Riade a Amã, já para não falar na vacuidade diplomática da sede das Nações Unidas em Nova Iorque, a solução dos dois Estados é proferida de forma vaga e esbatida, sem qualquer sustentação prática e política.

A impossibilidade de uma imposição externa sobre Israel e o esvaziamento dos inúmeros processos negociais e acordos tentados ao longo das últimas décadas, deixou à comunidade internacional apenas o mito de que um dia a Cisjordânia e a Faixa de Gaza se poderiam transformar num Estado palestiniano independente e soberano em convivência com Israel. Independentemente de todas as razões de cariz político-ideológico, é uma impossibilidade técnica, atendendo à crescente fragmentação de todo o território da Cisjordânia, inviabilizando uma continuidade e coerência territorial mínima. Recupero o que escrevi no PÚBLICO, em Novembro, relativamente à manta de retalhos em que se transformou a Cisjordânia, dividida por três zonas administrativas (A,B,C), consignadas nos Acordos de Oslo (I e II).

Importa notar que, actualmente, mais de 60 por cento da Cisjordânia está sob administração civil e militar de Israel (Zona C). Este território está ligado continuamente a Israel e integra as áreas mais férteis e ricas em termos hídricos, mas na qual não vivem mais do que 200 mil palestinianos, a maioria dos quais em localidades sem quaisquer condições de habitabilidade e infra-estruturas de saneamento. Nestas áreas, os direitos de construção estão praticamente vedados aos palestinianos, ao contrário daquilo que tem sido a política de edificação de novos colonatos na Zona C. Neste momento, deverão viver nesta área cerca de 400 mil judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos, espalhados por mais de 200 colonatos.

Israel não vai recuar no projecto nacionalista que tem vindo a cimentar ao longo das décadas, sobretudo quando as vozes radicais do lado palestiniano continuam a acalentar o sonho de “empurrar os israelitas para o mar”. Ainda há dias, Khaled Mashal, um dos líderes do Hamas, voltava a defender a ideia de um Estado Palestiniano que fosse do Rio Jordão ao Mar (Mediterrâneo) e de Rosh HaNikra (acima de Haifa junto ao Líbano) até Éilat (no Golfo de Aqaba). Basicamente, estava a referir-se a todo o território da Palestina abrangido pelo mandato britânico.

A retórica dos dois Estados é a única que resta no discurso político de quem procura um objectivo ou uma finalidade histórica para a região. A origem remonta-nos à Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1947, que consignava o Plano de Partição da Palestina após o fim do Mandato Britânico e que previa a criação de dois Estados, um judeu e outro árabe, ficando Jerusalém com estatuto autónomo sob jurisdição internacional (ver mapa). Depois da criação do Estado de Israel, em 1948, e da consequente “traição” ao sonho palestiniano, a comunidade internacional sentiu-se obrigada a uma espécie de compensação moral e histórica para com os palestinianos, sem, no entanto, projectar a devida autoridade política e poder militar para impor o que estava previsto na Resolução 181 e subsequentes.

Como também aqui referi em Novembro, dificilmente o curso da História voltará a proporcionar as mesmas condições que existiram nos anos 90 para a implementação de um modelo político estável de convivência entre israelitas e palestinianos. Mas é preciso notar que Oslo (I e II) nunca teve como objectivo a instituição um Estado palestiniano, mas sim uma Autoridade Palestiniana política e administrativa. Duas coisas muito diferentes que, desde o início, foram de imediato percepcionadas pelos palestinianos, cuja sua maioria, do povo às elites, se opôs ferozmente ao processo conduzido por Yasser Arafat, por considerar que o mesmo legitimaria uma solução burocrática e estrutural intermédia e condenaria à eternidade qualquer possibilidade de criação de um Estado independente e viável.

Esta possibilidade está hoje ainda mais distante, com uma Cisjordânia exígua e retalhada e uma Faixa de Gaza “terraformada”, marcada por uma alteração demográfica profunda. Aliás, neste momento, podemos já afirmar com propriedade que, na história recente da Palestina, existiram três períodos de deslocação massiva de palestinianos: entre 1947 e 1948, durante a Guerra da Palestina; em 1967, na Guerra dos Seis Dias; e agora, na ofensiva sobre Gaza.

No lado israelita é pouco crível que, mesmo com uma possível saída de Benjamin Netanyahu do poder, haja uma alteração substancial na política que tem sido seguida por Israel desde a sua fundação. Com períodos de maior ou menor acalmia, com Governos mais ou menos nacionalistas, houve sempre um eixo central na política hebraica face aos palestinianos: garantir a inviolabilidade das fronteiras de Israel e a segurança dos israelitas. Como tal, e na concepção securitária hebraica, onde a estrutura militar se sobrepõe sempre ao aparelho político, o paradigma consiste no máximo controlo territorial do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, de Rosh HaNikra até Éilat. Historicamente, este princípio de Estado tem-se mantido inabalável ao longo dos tempos.

Apesar disso, os líderes internacionais, com Joe Biden à cabeça, e provavelmente com elevada descrença, continuam a insistir no discurso dos dois Estados. Porém, o mais expectável é que qualquer eventual solução que possa um dia vir a ser concretizada passe por um modelo menos ambicioso e mais exequível, que se corporizará, por exemplo, numa entidade semiautónoma e descentralizada, seja uma federação ou confederação de territórios palestinianos. Provavelmente, será destituída de muitos dos elementos clássicos que compõem um verdadeiro Estado independente e viável e estará muito longe daquilo que a herança histórica acalenta e o Direito Internacional contempla. E mesmo que as forças externas e os alinhamentos geopolíticos proporcionem a criação de um novo actor palestiniano no seio do sistema internacional, muito dificilmente Israel permitirá que esse Estado caminhe livre e soberanamente em toda a sua plenitude.

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