A dádiva da Palestina

Israelitas e palestinianos são ambos vítimas da sua própria condição de predestinados numa Terra Santa. Não encaram tal responsabilidade como um fardo ou sacrifício, mas como uma dádiva divina.

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Edward Said (1935-2003) escreveu um dia que o orientalismo e o anti-semitismo moderno tinham raízes comuns. Com isso, penso que o autor quis dizer que se trata de construções mentais exteriores à própria vivência dos povos árabe e judeu, feitas a partir de ilusões, percepções, preconceitos, estigmas, dogmas, ideias preconcebidas, que acabam por criar um turbilhão de discussão e ódio. De certa maneira, o mundo exterior continua a olhar para o conflito israelo-palestiniano através de lentes desfocadas, ideológicas, escapando-lhe as nuances do terreno, perpetuando, assim, convicções pessoais inabaláveis e posições de princípio inamovíveis que vão alimentando uma ideia de rivalidade ancestral dos tempos bíblicos entre palestinianos e judeus.

Em Israel, são muitos os sectores progressistas que pulsam na sociedade judaica, alguns deles bastante activos ao longo dos anos na exigência da retirada dos colonatos da Cisjordânia ou, como se tem assistido mais recentemente, na crítica feroz ao Governo mais ultra-ortodoxo desde a criação do Estado hebraico. A sociedade civil é vibrante e robusta, existindo movimentos e pessoas envolvidas em luta por melhores condições de vida e por uma solução de estabilidade para ambos os povos, nomeadamente o palestiniano. A maior parte dos israelitas não vive o seu quotidiano sob os ditames da Promessa da Terra Prometida que Deus fez a Abraão ou na obsessão de um dia verem construído o Terceiro Templo de Jerusalém. Tal como a maioria dos palestinianos não vive rancorosa com a traição britânica da Declaração Balfour de 2 de Novembro de 1917 ou empenhada em “empurrar os judeus para o Mediterrâneo”.

Em 2001, na altura enquanto jornalista e em plena intifada de Al Aqsa, viajei para a Palestina, onde passei uma temporada (voltaria lá um ano depois). Ali estudei na Universidade de BirZeit, fiz amigos, entrevistei políticos, terroristas do Hamas e das milícias Tanzim, convivi com militantes armados da Fatah, fui acolhido por bons samaritanos nas montanhas de Nablus, dormi em campos de refugiados, visitei os Montes Golã e as Shebaa Farms, andei de Gaza a Haifa, de Jericó a Telavive, passando por Hebron. Concretizei o sonho de conhecer uma terra tão fascinante, que o poeta inglês George Sandys definiu como “uma terra onde corre leite e mel”.

Compreendi a frustração de milhares de palestinianos perante o sistema discriminatório montado nos territórios da Cisjordânia: os checkpoints entre diferentes localidades; as estradas reservadas a judeus com acesso directo entre Israel e colonatos ultra-ortodoxos; os raides gratuitos das IDF; o contraste entre o conforto dos colonatos judaicos e as condições debilitadas de muitas localidades palestinianas, algumas delas sem infra-estruturas dignas.

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Familiares choram a morte de um homem morto em Tubas, Cisjordânia, por um ataque israelita, nesta semana ALAA BADARNEH/EPA

Tinha a noção de que só entenderia a manta de retalhos em que se tornou a Cisjordânia se fosse ao território ver o desenho das três zonas administrativas (A,B,C) consignadas nos Acordos de Oslo, para saber que, neste momento, mais de 60 por cento está sob administração civil e militar de Israel (Zona C). Um território ligado continuamente a Israel, que integra as áreas mais férteis e ricas em termos hídricos da Cisjordânia, mas na qual não vivem mais do que 200 mil palestinianos, a maioria dos quais em localidades sem quaisquer condições de habitabilidade e infra-estruturas de saneamento. Nestas áreas, os direitos de construção estão praticamente vedados aos palestinianos, ao contrário daquilo que tem sido a política de construção de colonatos na Zona C. Actualmente, deverão viver nesta área cerca de 400 mil judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos, espalhados por mais de 200 colonatos. Também nunca entenderia a vida de muitos palestinianos se não conhecesse os campos de refugiados nalgumas cidades onde vivem à margem de uma sociedade já ela própria marginalizada por Israel e pela comunidade internacional. Nunca perceberia verdadeiramente o que é o enclave da Faixa de Gaza, se não tivesse visitado, por duas vezes, este território claustrofóbico.

Mas sem ir à Palestina também nunca sentiria os receios de um qualquer cidadão israelita, sentado numa esplanada entregue à sorte da lotaria da vida, nunca sabendo quando chegaria a sua hora de ser alvo de um rocket ou de um atentado suicida, uma realidade muito presente nos anos 90 e ainda mais durante a intifada de al Aqsa (2000-2005). Para se ter uma ideia, nos anos 90, sobretudo no período a seguir aos Acordos de Oslo II (1995), morreram cerca de 120 israelitas, em 14 ataques suicidas perpetrados maioritariamente pelo Hamas, através do seu braço armado, as Brigadas Izz ad-Din al Qassam, e pela Jihad, pelas Brigadas al Quds. Esta prática intensificou-se brutalmente durante a intifada de al Aqsa, que se iniciou em Setembro de 2000. Até 2005 foram realizados mais de 130 atentados suicidas, provocando mais de 600 mortos em Israel, com as Brigadas de al Aqsa, ligadas à Fatah, a contribuírem também para esta mortandade. A partir de 2006/2007, os atentados suicidas em Israel abrandaram, ao contrário do uso de rockets por parte do Hamas, a partir a Faixa de Gaza, e do Hezbollah, através do sul do Líbano.

Compreendi também os medos da consciência colectiva judaica, traumatizada por um passado violento de perseguição étnico-religiosa, e que se sente rodeada de inimigos, num Estado em que a zona mais estreita de profundidade estratégica tem apenas 14 quilómetros, e que acredita convictamente de que do “outro lado” existem algumas correntes (minoritárias) que continuam a acalentar o sonho de “empurrar os israelitas para o mar”. Um Estado, apesar de tudo, ainda marcado pelas três guerras que travou com os países árabes (1948, 1967 e 1973). Factores que reforçam uma certa psicose que perpassa uma parte da sociedade israelita, que lida no seu quotidiano militarizado com actos e gestos algo perturbadores para um qualquer cidadão europeu.

Dificilmente o curso da História voltará a proporcionar as mesmas condições que existiram nos anos 90 para a implementação de um modelo político estável de convivência entre israelitas e palestinianos. Desde a Conferência de Paz de Madrid de 1991, todos as tentativas negociais fracassaram. Sobre este assunto, convém esclarecer que os célebres Acordos de Oslo de 1993 (I) e 1995 (II) formalizaram uma situação intermédia que, embora contemplasse alguns avanços – como a criação da própria Autoridade Palestiniana, a retirada israelita da Faixa de Gaza e de algumas zonas da Cisjordânia, ou a soberania policial palestiniana em áreas determinadas –, deixava em suspenso por tempo indeterminado tudo o resto (capital do país, retorno dos refugiados, impostos, colonatos judaicos, acesso a recursos hídricos, entre outras questões vitais).

Podem ser encontradas inúmeras razões para o falhanço sucessivo das muitas iniciativas diplomáticas, nomeadamente a morte de Yitzhak Rabin e a intransigência das partes. Destaco, porém, uma explicação que me parece ser bastante relevante e que me foi partilhada por vários palestinianos: a causa palestiniana serve apenas para os “irmãos” árabes ficarem bem na fotografia junto das suas opiniões públicas. Nunca existiu uma verdadeira solidariedade pan-árabe para impor um acordo a Israel (e Washington). Por isso mesmo, Edward Said, já citado neste texto, escreveu que “a história palestiniana tomou um curso peculiar e muito diferente da história árabe”.

E também, acrescentaria eu, muito distante daquele que foi o caminho tortuoso e errante trilhado pelo povo judaico durante séculos, após a sua expulsão da Palestina há cerca de dois mil anos. Porém, há um fatalismo que os dois povos partilham: ambos são vítimas da sua própria condição de predestinados numa Terra Santa. Não encaram tal responsabilidade como um fardo ou sacrifício, mas como uma dádiva divina e, como tantos me disseram com orgulho, não há outra forma de estar e viver naquela terra se não com paixão e devoção.

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