Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados

Preocupamo-nos muito com a privacidade dos dados, mas pouco com a ética de se prescrever polimedicação sem informar pacientes de potenciais problemas associados.

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Alexandra Campos publicou recentemente no PÚBLICO uma reportagem muito interessante sobe o problema da polimedicação em Portugal. Ficámos a saber que mais de um terço da população acima dos 65 anos toma mais de cinco medicamentos simultaneamente – o que remete Portugal para o topo dos países com este problema na Europa (só atrás da Republica Checa e Israel que também participou neste estudo europeu).

Um dos grandes problemas da polimedicação é que os medicamentos são muitas vezes receitados por médicos de especialidades e até de sistemas de saúde diferentes, que não recebem alertas sobre outros medicamentos já receitados ao mesmo paciente. Além disso, frequentemente os médicos não estão cientes das muitas interações nocivas entre os vários medicamentos que são conhecidas, estabelecidas cientificamente e publicadas em bases de dados públicas – não se trata sequer de potenciais interações desconhecidas que obviamente não podem ser usadas como alertas, mas cujo risco aumenta com polimedicação.

O nosso grupo de investigação tem-se especializado em analisar o problema das interações nocivas na polimedicação, com projetos patrocinados nos últimos dez anos pelos National Institutes of Health nos EUA e também a nível nacional pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Para perceber a escala do problema das interações medicamentosas, avaliámos os cuidados primários em populações distintas de três continentes: 133 mil pacientes da cidade de Blumenau no Brasil (Estado de Santa Catarina), 5,5 milhões de pacientes na Catalunha e 250 mil pacientes do maior sistema de saúde privado da cidade de Indianápolis nos EUA (Estado de Indiana). Apesar de diferenças entre os vários sistemas de saúde – por exemplo, o formulário do sistema público de Blumenau só inclui 140 medicamentos, enquanto o sistema privado de Indianápolis inclui mais de mil –, ficou bem claro que em todos estes sistemas as mulheres têm bastante maior risco de lhes serem receitadas interações conhecidas, algumas muito nocivas.

Em relação a idosos, o problema é ainda bem maior do que descrito na reportagem do PÚBLICO. De facto, o nosso último estudo (ainda em avaliação em revista científica) mostra que, se os médicos prescrevessem medicamentos aleatoriamente nas mesmas proporções, seriam receitadas menos interações medicamentosas prejudiciais do que os números reais. Isto é, os idosos (de ambos os sexos, mas é pior entre as mulheres) estão potencialmente mais expostos às complicações da polimedicação do que se fossem tirar medicamentos das prateleiras ao calhas!

Uma vez que Portugal tem maior proporção da população em polimedicação do que Espanha, este problema deve ser ainda maior por cá, só que não sabemos por não haver disponibilização desses dados. É importante frisar que a análise desses dados leva à descoberta e recomendação de ações específicas que podem melhorar a saúde e reduzir os custos de saúde pública. No nosso estudo, descobrimos que, se o sistema de saúde catalão substituir um único medicamento (Omeprazole, inibidor da bomba de protões para tratamento de refluxo gástrico) por outros medicamentos semelhantes, o risco de ser receitada uma interação na polimedicação nesta população reduz-se em 23% para mulheres e 20% para homens, reduzindo significativamente também a diferença entre sexos neste problema – com a substituição de um único medicamento!

A recomendação dessa ou de outras substituições poderia ser facilmente implementada com a introdução de um sistema de alerta robusto, na prescrição, nas farmácias ou no acompanhamento de cada paciente. Além de melhorar a saúde dos pacientes, o que deve ser o principal objetivo ético, a redução dos problemas inerentes à polimedicação – especialmente numa população envelhecida – pode certamente levar também à redução de custos. Uma estimativa conservadora que fizemos da hospitalização por interações medicamentosas, conclui que os seus custos no estado brasileiro de Santa Catarina (população de 7 milhões, bem mais jovem que a de Portugal e com menos medicamentos disponíveis) ascendem a entre 21 e 61 milhões de dólares americanos por cada 18 meses.

Criar alertas para possíveis interações ou reações adversas em polimedicação não só é relativamente fácil de fazer, como imensos sistemas de saúde já os têm. Uma vez que existe um sistema nacional de códigos de prescrição, é também possível fazer um sistema nacional de alertas integrativo para médicos no ato da prescrição, farmácias no ato da venda ou no acompanhamento de pacientes por gestores de saúde publica. No caso das interações e reações mais perigosas conhecidas, uma receita deveria acionar um alerta para que o médico confirme a necessidade de prescrever um medicamento que se sabe causar potenciais problemas graves na presença de outros já prescritos ao mesmo paciente (de que o médico pode nem estar ciente), bem como a recomendação automática de alternativas.

Também o próprio paciente deveria receber alertas, já que os folhetos informativos de cada medicamento são normalmente de difícil compreensão. Preocupamo-nos muito com a privacidade dos dados, mas pouco com a ética de se prescrever polimedicação sem informar pacientes de potenciais problemas associados.

Em Portugal, mesmo contactando as entidades responsáveis ao abrigo de projetos da FCT especificamente desenhados para se utilizar a ciência de dados e a Inteligência Artificial na administração pública, é muito difícil obter dados de prescrição médica para investigação científica. De facto, é muito difícil saber qual a verdadeira escala deste problema, muito menos implementar mecanismos para melhorar os resultados e custos de saúde associados – ao contrário da Catalunha e Dinamarca que disponibilizam estes dados sobre toda a sua população durante décadas. Seguindo esses exemplos excelentes (que utilizam todas as normas europeias de privacidade e segurança) na utilização de dados ao serviço do bem-estar da população, está mais do que na hora de se levar a sério o problema da polimedicação, disponibilizando os dados de prescrição nacionais com vista à implementação de ações especificas para melhor servir a saúde publica nacional.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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