Austeridade 2.0

Quase uma década depois da saída da troika, voltamos a ter técnicos não-eleitos a tomar decisões determinantes sobre o nosso orçamento e, mais uma vez, com o apoio do Partido Socialista.

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Nos últimos meses, longe do debate político nacional e da atenção mediática, está a ser negociada a revisão das regras de governação económica da União Europeia. As mudanças foram anunciadas pela Comissão como forma de promover o investimento e aumentar a “apropriação nacional”, jargão europeu para a ideia de que os Estados passariam a definir as suas próprias políticas orçamentais.

As negociações do lado do Parlamento Europeu foram encabeçadas pelo Partido Popular Europeu (PPE), de que fazem parte PSD e CDS e pelo grupo dos Socialistas e Democratas Europeus (SD), de que faz parte o PS, que nomearam uma das relatoras deste dossier específico, Margarida Marques.

O balanço da austeridade está feito e é esmagador. Durante os anos de austeridade mais violenta, entre 2010 e 2015, a economia portuguesa sofreu, graças aos PEC e ao subsequente programa da troika, uma recessão de 6,5% que resultou numa gravíssima crise social, com o aumento a pique do desemprego e da pobreza (inclusive no trabalho). Tudo em nome da consolidação orçamental.

Só que o resultado de todo esse sacrifício foi, não a redução prevista no memorando da troika, mas um aumento astronómico da dívida em percentagem do PIB em 31 pontos percentuais. O completo falhanço desta política deveria ser suficiente para que a ideia fosse abandonada.

Foi por isso que, no início deste processo, animados pela hipótese de se poder restabelecer alguma sanidade nas regras orçamentais da UE, organizámos com Margarida Marques e Philippe Lamberts, representante dos verdes, uma conferência sobre as novas regras e a necessidade de promover o investimento público. Na altura, a perspetiva era a de que pudéssemos construir uma frente dos partidos de esquerda para lutar por uma rotura com as políticas de austeridade e por uma resposta adequada aos desafios sociais e ambientais que a Europa enfrenta.

A expectativa revelou-se muito otimista. Durante as semanas seguintes, assistimos a uma concertação completa entre a relatora socialista e a do PPE, com concessões aos liberais. Mas o pior é que a concertação consistiu numa cedência sistemática dos socialistas em todos os aspetos desta legislação que contam e darão forma às políticas orçamentais dos Estados-membros.

O texto, desde logo, institui que as trajetórias orçamentais dos Estados-membros serão definidas em função da despesa pública primária líquida. Os desvios em relação a essa previsão (contabilizados através da chamada “conta de controlo”), podem levar a sanções. O Procedimento de Défices Excessivos é assim agilizado. Esta abordagem completamente enviesada das contas públicas privilegia estratégias de consolidação através de cortes na despesa em detrimento do crescimento. Retoma a lógica das troikas e demonstra que Comissão, direita e socialistas não aprenderam nada com a experiência desastrosa da austeridade.

Entre 2010 e 2023, de acordo com dados da Ameco [base de dados macroeconómicos anuais, Direcção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros da Comissão Europeia], a despesa pública primária (excluindo juros) em percentagem do PIB diminuiu em Portugal de 49 para 40,5%. As médias da União Europeia e da Zona Euro para 2023 são, respetivamente, 47,2 e 47,7%. Mais grave ainda, o investimento público, medido em formação bruta de capital fixo, caiu de 5,3 para 2,7%. Enquanto o SNS e a escola pública colapsam, o PS manteve uma austeridade soft e fez das acumulação de excedentes orçamentais a sua prioridade política. Nota-se que desde a covid-19 que as regras europeias estiveram suspensas. Os últimos dados do Eurostat destacam exatamente Portugal por ter o segundo maior excedente orçamental e a segunda maior redução da despesa pública.

O segundo domínio em que este acordo defraudou as expectativas mais modestas é o do respeito pela vontade democrática dos cidadãos. Após várias formulações, o texto final do Parlamento determina que a trajetória da despesa dos Estados-membros resultará de uma “negociação” entre os Estados e a Comissão, sendo que a versão da Comissão pode, no final, ser sempre imposta. Isto mesmo que trajetória proposta pelo Estado-membro cumpra integralmente os critérios numéricos obrigatórios para a redução da dívida e do défice. Novos governos eleitos podem rever a trajetória, mas ficam obrigados a manter, pelo menos, o mesmo ritmo de consolidação orçamental. Mudança democrática, só para pior.

Ora, conhecendo o cadastro da Comissão de ser forte com os fracos e fraca com os fortes, isto são más notícias para as economias periféricas, sobretudo a portuguesa, que já tem como ponto de partida uma das despesas mais baixas da União Europeia. Depois de tanta propaganda, a única cláusula que favorece o investimento é a que permite pequenos desvios temporários da trajetória se e quando determinados investimentos do Estado em causa forem considerados do interesse da União e aprovados pela Comissão.

Em todo o processo, o nível de discricionariedade da Comissão é assustador. Quase uma década depois da saída da troika, voltamos a ter técnicos não-eleitos a tomar decisões determinantes sobre o nosso orçamento e, mais uma vez, com o apoio do Partido Socialista.

A dimensão do enviesamento à direita desta proposta está bem expressa no voto em plenário: direita, liberais e conservadores (que incluem uma parte da extrema-direita europeia) votaram a favor quase unanimemente do mandato do Parlamento. Esquerda e Verdes votaram unanimemente contra. E até 17 socialistas violaram a orientação de voto do seu grupo e da sua relatora (15 contra, 2 abstenções) para não ficarem associados a esta triste página.

Se negociações em trílogos (com o Conselho e a Comissão) concretizarem este acordo, é uma gigantesca oportunidade perdida, que dará ainda mais combustível à crise social e ao crescimento da extrema-direita que dela se alimenta. Que os socialistas que apoiaram estas novas regras continuem a repetir o slogan do “virar a página da austeridade” mostra apenas que não há limites, quando a vergonha não é um problema.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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