A emergência de um novo ciclo numa Educação ligada à máquina

Esgotou-se o prazo de validade do estado de negação nos temas mais críticos: queda nas aprendizagens, descrédito dos modelos de avaliação, falta de professores e degradação do clima escolar.

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A Educação está ligada à máquina. É obrigatório assumi-lo; sem amarras de grupos, nem temor do contraditório. Qualquer que seja o próximo Governo, é imperativo um novo ciclo. Esgotou-se o prazo de validade do estado de negação nos temas mais críticos e integrados: queda nas aprendizagens, descrédito dos modelos de avaliação, falta estrutural de professores e degradação do clima escolar. Apesar dos contínuos avisos dos professores desde a manifestação de 8 de Março de 2008, o país político despertou 15 anos depois. Só agora a Educação entrou nas campanhas eleitorais.

De facto, a degradação atingiu as democracias ocidentais. Recorde-se que foi a crise petrolífera de 1973 que inaugurou o período de incertezas no elevado nível educativo do Ocidente ao inspirar o desinvestimento público no ensino. Portugal estava muito atrasado. Saía de uma ditadura de 48 anos, de guerras coloniais e de uma profunda crise económica e social. Implementou, depois, a massificação escolar. Só conheceu o clima de incertezas na primeira década deste século; também com prevalência das políticas ultraliberais. Como explicou ao Expresso Samuel Moyn, investigador de Yale, “o sistema político está a virar à direita desde que os partidos socialistas se tornaram neoliberais”; partidos socialistas, sociais-democratas e de todo o centro-direita, acrescentamos nós.

Aliás, o nosso desinvestimento na Educação neste milénio (de 6,3 % do PIB para 4,6%) inspirou-se no modelo das escolas particulares e cooperativas geridas por empresas privadas da órbita dos partidos mainstream. Prometia-se a receita ultraliberal: liberdade de escolha, igualdade de oportunidades, fazer mais com menos, prémios por desempenho e mais oportunidades de negócio. Os resultados falam por si: privatização de lucros com a precarização de professores, aumento das desigualdades educativas, climas de todos contra todos, fuga de profissionais e eleitores empurrados para guetos de radicalização. Que não se repita. A propósito, a Suécia, que foi o único país nórdico a perder o juízo na Educação na década de 1990, reverteu o "colossal fracasso das empresas privadas da Educação".

Mas o mais dramático é a "espécie de limite" das democracias liberais. Urge reinventar e não apenas conservar. Na Educação, enfrente-se a queda no PISA 2022. É óbvio que é insuficiente monitorizar apenas com estes instrumentos; cada país deve acrescentar dados, principalmente por amostra, e reinventar respostas, como "a Escócia, a Finlândia, a França ou a Suécia.”.

Portugal tem dificuldades. As provas de avaliação dos alunos não são, sequer, levadas a sério, com excepção no acesso ao superior ou quando se inscrevem fantasmas do passado. Mudaram, com excessos ideológicos à direita e à esquerda, em cada ciclo governativo da mirabolante década de 2010.

Requer-se, como nos países nórdicos imunes ao ultraliberalismo, tecnicidades estáveis e exigentes e dois princípios: confiança nos professores (a vigilância de provas, até de crianças, é o cúmulo da desautorização e do desperdício que causa pesadelos logísticos); eliminação da valoração de escolas e professores baseada no absurdo de os resultados dos grupos de alunos deverem melhorar todos os anos.

A propósito, na avaliação de professores e escolas encontramos a aplicação de mais dois infernos do universo da desacreditação: aos primeiros, modelos de gestão opacos e kafkianos; às segundas, antíteses das auditorias que estimulam os sistemas de informação para entradas de dados não repetidas ou inúteis.

A reinvenção enfrentará desafios ainda mais decisivos na falta estrutural de professores. A profissão perdeu atractividade. Está desautorizada. Desprezou-se os profissionais em exercício. A situação é gravíssima. Faltam professores aos diversos níveis, incluindo nas universidades formadoras. Procuram-se candidatos, como em 1980, que necessitam de formação científica, pedagógica e profissional.

Havendo candidatos, faltará recuperar a escola da atmosfera doentia e "zombie". O clima de arbitrariedade, parcialidade, desconfiança e venialidade, é captado por quem experimenta e que também foge na primeira oportunidade. Além disso, há muito que se eliminou os sufrágios directos e universais e a preocupação com a legitimidade democrática.

Agrava-se, porque a organização emaranhou-se numa torre de Babel: o Ministério da Educação desconcentrou poderes no modelo autocrático de mega-agrupamentos de escolas e competências nos descentralizados municípios.

Por isso, analise-se a seguinte reinvenção orientada para a clarificação, a sustentabilidade financeira, a oxigenação do clima e a essencial gestão de proximidade:

1. Apenas um conselho geral por concelho (e não um por agrupamento ou escola), com adaptações nas áreas metropolitanas, e uma agência municipal dos assuntos administrativos da educação, com terminais nas escolas;

2. Um conselho directivo – eleito de modo semelhante aos executivos até 2009 e com a composição aberta aos professores do concelho – e um conselho pedagógico em cada escola dos 2.º e 3.º ciclos e ensino secundário;

3. Um delegado escolar concelhio – eleito pelas escolas do pré-escolar e do 1.º ciclo –, um coordenador eleito em cada uma e um conselho pedagógico concelhio destes níveis de ensino.

Em suma, a fragilidade das democracias liberais também se relaciona com os erros no ensino público e com o menosprezo por valores superiores da cultura helénica. É crucial que a escola, que já enfrenta os desafios da inteligência artificial, da transição digital e dos fluxos migratórios, eduque para uma sociedade livre do autoritarismo e do "taylorismo" (poucos pensam, muitos executam). Recupere-se o contraditório e o espaço livre das ideias, da liberdade de opinião e da liberdade de expressão; e, no limite, da liberdade elementar dos humanos. Na verdade, esse foi um dos cancelamentos decisivos que ligaram a Educação à máquina.

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