Contributos para uma política para as profissões da saúde

É necessário desenvolver uma estratégia de inter e transprofissionalidade que garanta relações horizontais entre os profissionais de saúde.

Ouça este artigo
00:00
05:24

Reiteradamente afirma-se que, mais do que um "recurso" humano, os profissionais de saúde são o pilar essencial dos sistemas de saúde. Apesar disso, assiste-se a uma crise global das profissões de saúde, reconhecida por múltiplos organismos internacionais e mesmo por diversos Estados, sem que, todavia, se adotem medidas estruturais. Contudo é evidente que, sem profissionais, não se concretizarão as ambições da cobertura universal de saúde, de segurança dos cuidados e dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável.

Urge, portanto, equacionar uma visão estratégica para as profissões de saúde, necessidade esta já identificada pelo próprio Governo quando fez publicar um despacho cujo objetivo final é a “melhoria do planeamento e da gestão estratégica de recursos humanos do setor da saúde, nomeadamente do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.

Todavia, essa visão estratégica não se pode preocupar apenas com os profissionais que já estão no mercado de trabalho. Assim, neste artigo, daremos destaque à relação entre a formação e a profissionalização.

Começamos pela atratividade dos cursos da área da saúde, pelas formas de seleção dos candidatos, bem como pelas condições em que a formação decorre; abordaremos ainda de forma breve a formação ao longo da vida.

Assim, consideramos que a atratividade dos cursos está formatada pela imagem de serviços de saúde sobrelotados, horários incómodos, remunerações pouco apelativas associadas a exigências crescentes ao longo de todo o percurso profissional e um estatuto social em crise. Por sua vez, a seleção dos candidatos aos cursos de saúde continua a ser feita exclusivamente com base nas notas do secundário e dos exames de acesso, apesar de já termos percebido que as mesmas não vaticinam necessariamente a qualidade dos profissionais. No que concerne à oferta formativa, constatamos que a mesma está dispersa por um número crescente de cursos, quantas vezes com perfis de competências sobreponíveis, separada por diferentes subsistemas de ensino superior e sem qualquer relação entre si, ainda que no futuro tenham de trabalhar em conjunto.

Em simultâneo, urge fazer uma reflexão sobre a adequabilidade dos perfis de formação e consequentemente das competências profissionais, às características dos atuais e futuros perfis epidemiológicos da população. Olhando para os modelos em uso constata-se que se continua a formar mais para a doença aguda do que para a prevenção; ignora-se que prevalece a multimorbilidade crónica e que carecemos de investir muito mais na literacia em saúde ao longo do ciclo da vida. Urge ainda adequar os perfis de formação aos desafios tecnológicos e de desenvolvimento profissional. Em estreita articulação com isto, e sem colidir com a liberdade de escolha dos nossos jovens, seria fundamental clarificar quais as necessidades do país dos diversos tipos de profissionais de saúde para os próximos 20 anos.

Já no que concerne às condições de desenvolvimento profissional, sobressaem modelos organizacionais e de cuidados inalterados há dezenas de anos e não adequados às exigências dos perfis epidemiológicos da população; por sua vez as diversas profissões continuam fechadas sobre si próprias, com conteúdo funcional das categorias profissionais inalterado, em alguns casos, há mais de 30 anos, apesar da evolução da formação; as organizações continuam a não valorizar os percursos formativos e a demonstrarem ausência de qualquer estratégia de desenvolvimento profissional; os profissionais continuam a ser sobrecarregados de exigências, muitas delas de natureza burocrática; os contextos de exercício estão cada vez mais obsoletos quer do ponto de vista estrutural, quer de equipamentos; a tudo isto acrescenta-se uma política remuneratória sem um racional claro e que parece não perspetivar o conjunto das profissões.

Face ao exposto e tendo como referência a vasta literatura que tem sido produzida propõe-se que seja definida uma visão estratégica para o desenvolvimento das profissões de saúde a qual deve incluir os seguintes conceitos: educação interprofissional alicerçada numa perspetiva de aprendizagem transformadora e interdependência na educação e numa prática interprofissional colaborativa; equipas interprofissionais e complementaridade de competências; carreiras profissionais enquanto alicerce e motor para o desenvolvimento profissional contínuo com reconhecimento e recompensa justa desse desenvolvimento.

Com base nesta visão estratégica propõe-se ainda, que se defina um core de competências comuns a todos os profissionais de saúde; que se promovam experiências de Escolas de Saúde Integradas, assentes em modelos de aprendizagem interprofissional; que se promova um enquadramento e estratégias para a formação contínua profissional e interprofissional ao longo da vida; e que se promovam modelos de cuidados que garantam a centralidade da pessoa/comunidade e a integração e continuidade de cuidados.

Adicionalmente, é necessário desenvolver uma estratégia de inter e transprofissionalidade que garanta relações horizontais entre os profissionais de saúde; a possibilidade de todos os profissionais exercerem a sua atividade em toda a extensão da sua educação e formação; investir na formação de líderes, atribuir lideranças em função de competências e avaliar resultados; incentivar o desenvolvimento de projetos de equipas focados nas pessoas e na integração e continuidade; e desenvolver modelos de trabalho em equipas interprofissionais otimizando e maximizando as competências presentes e respetiva complementaridade.

Por último, enfatizamos a necessidade de equacionar uma política de valorização, lato sensu, das profissões de saúde e de compatibilização da vida profissional com a familiar.

Em resumo, defende-se uma forte aposta no mais importante e estrutural recurso de qualquer sistema de saúde – os profissionais de saúde , a começar pela formação inicial e prolongando-se por todo o percurso profissional. Defende-se ainda uma relação interprofissional que permita o cabal aproveitamento das competências instaladas, derrubando para isso as atuais rígidas fronteiras entre as profissões.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar