Nada vimos em Gaza

Se Gaza é o nunca visto, imaginem se víssemos. O mundo precisa que entrem repórteres lá. E que quem lê assine jornais.

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1. “Nunca vimos nada assim.” “Nunca vi isto.” “Jamais.” “É sem precedentes.” “Isto tem de parar.” “Isto tem de acabar.”

Todos os dias mais alguém das Nações Unidas (incluindo o secretário-geral), ou algum responsável de outra instituição internacional diz uma destas frases sobre Gaza. A última que li: “Nunca vimos 2,2 milhões de civis forçados à fome em semanas”, disse à Al-Jazeera o relator especial da ONU para o direito à alimentação, Michael Fakhri. Nunca vimos este nível de fome usada como arma tão rapidamente, e completamente, jamais. E isto nem era o lead da notícia. O lead era que todas as crianças até cinco anos em Gaza não estão a receber nutrição suficiente, e correm o risco de danos físicos e mentais permanentes.

Todas as crianças até cinco anos. Que em Gaza são 335 mil. O equivalente a mais de metade das crianças dessa idade em Portugal. Pensemos em mais de metade das crianças que são nossas filhas, netas, sobrinhas, filhas de amigos, afilhadas. E que, ao contrário das outras guerras, de tudo o que conhecemos, não têm para onde fugir. Além de esfomeadas, foram amontoadas à bomba em tendas molhadas, sujas, focos de doença. Mais as que nesta quinta-feira, e amanhã, e depois de amanhã, vão sobreviver aos 180 partos diários que acontecem em Gaza. Cesarianas sem anestésicos, sem hospital, sem cama. Aleitamentos sem água, sem comida. Imagino que quem deu à luz possa imaginar. Mais as 50 mil mulheres que continuam grávidas em Gaza, agora. Realmente nunca vistas, além das estatísticas.

Porque são palestinianas, e não europeias, americanas, israelitas.

E porque toda a gente lá é palestiniana, e não europeia, americana, israelita, também há outro sem precedente em Gaza desde 7 de Outubro: não entram repórteres (fora os inseridos nas tropas israelitas, mediante censura), e os locais têm estado a ser mortos.

Portanto, se Gaza é o nunca visto, imaginem se víssemos. Ainda não sabemos tudo do 7 de Outubro, e muitos jornalistas de grandes órgãos, com tempo e meios, trabalharam nisso em detalhe. Quanto ao que está a acontecer desde então em Gaza, o jornalismo pôde captar só uma pequena parte. Pior do que o nunca visto será tudo o que não vimos.

Não que neste fim de Janeiro de 2024 toda a gente não tenha pelo menos ideia do que se passa lá. Mas se a vida segue como se nada fosse — e tão convenientemente para vários regimes —, também é porque nada vemos em Gaza. Eco do filme de Resnais/Duras sobre Hiroxima: vimos, mas nada vimos.

Por outras palavras, a vida segue à custa da morte em Gaza. Ver, teme-se, seria insuportável. E que forma de vida será esse não-ver? Quem então seremos nós?

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Wael Al-Dahdouh, jornalista da Al Jazeera, abraça a filha e o filho durante funeral do seu filho, o jornalista palestiniano Hamza Al-Dahdouh REUTERS/Mohammed Salem

2. Desde 7 de Outubro o Governo de Israel emitiu milhares de cartões de imprensa para jornalistas estrangeiros. Um cartão sem o qual era impossível até então entrar em Gaza (na Cisjordânia basta o passaporte). E, não podendo entrar em Gaza, a grande maioria destes enviados ficou a cobrir o território de Israel. O trauma do ataque do Hamas, também ele sem precedentes no Estado judaico. Os lutos de 1200 mortos, as famílias de 240 sequestrados, as povoações mais perto de Gaza ou do Líbano, os lugares para onde foram deslocados os kibbutzim destruídos ou em risco, os protestos contra o Governo de Netanyahu e a condução da guerra, a não-libertação dos reféns, etc.

Tudo importante. E extensamente reportado, de múltiplos ângulos, com a disponibilização contínua de porta-vozes, transportes, viagens, comentadores em Israel. Alguns via governo ou instituições estatais, outras via sociedade civil. Ou seja, qualquer jornalista que aterrou em Israel no pós-7 de Outubro terá recebido em inglês, no seu email ou WhatsApp, muitas possibilidades de reportagem, com contactos de israelitas prontos a falar, sugestões de guias e equipamento, fotografias e vídeos de livre utilização, visionamentos das imagens em bruto do 7 de Outubro, comunicados, resumos, traduções. Uma gigantesca rede de assessoria de imprensa. O repórter podia só pôr o despertador para a hora do autocarro em que as autoridades israelitas levariam os jornalistas num tour pela destruição do lugar tal, e os devolveriam ao fim do dia a Telavive ou Jerusalém. Enquanto outro repórter, a preparar a sua peça sobre Israel, tinha nas mensagens do telefone respondedores de dúvidas, ou fornecedores de números. Isto, ao dispor de dois ou três mil enviados, além de todos os jornalistas israelitas.

Entretanto, algumas dezenas de palestinianos cobriam uma catástrofe sem precedentes em Gaza, sendo eles mesmo alvos. E na Cisjordânia disparava a guerra na sombra há muito.

Ao longo de mais de 20 anos, vi multiplicarem-se centenas de milhares de colonos na Cisjordânia, com todas as estruturas que apoiam a ocupação (urbanizações, estradas, redes de abastecimento, transportes, empresas, checkpoints, soldados, muro). Isto mudou a paisagem onde deverá-deveria vir a estar um Estado palestiniano. Israel nunca parou de transferir população para o território que ocupa, violando as convenções internacionais. Cada colono é ilegal, e todos os colonos são Israel. Sempre foram o bulldozer do Estado, a sua carne para canhão, a sua milícia, e no actual Governo de Netanyahu a sua ala terrorista, cada vez mais armada, e protegida por soldados, que cada vez mais são colonos. Claro que muitos colonos estão na Cisjordânia só por ser mais barato. Não porque querem ocupar, mas porque não se importam de ocupar. Ao Estado dão jeito. E depois há todos os colonos ideológicos, radicais, que atacam constantemente palestinianos, lhes saqueiam e incendeiam bens, os fazem reféns, os torturam, os executam. São o fruto de todos estes anos de ocupação. E agora têm no Governo supremacistas judeus como Ben-Gvir e Smotrich, eles mesmos colonos.

A violência dos colonos de Israel não é o que escapa ao controlo do Governo, ao contrário do que os EUA tentam vender, para dar um ar de que pressionam Israel em algo. Os colonos são a política de Israel. São o Estado.

Assim, enquanto os EUA e a Europa debatem a solução Dois Estados, há muito por contar na Cisjordânia. Agravou-se desde 7 de Outubro, e foi infinitamente menos coberto do que o território de Israel. Se em Gaza a vida está a ser extinta, qualquer povoação da Cisjordânia, neste momento, teme pela vida. E ainda há Jerusalém, começo e fim de tudo. A parte oriental, palestiniana, também ela invadida por colonos, cada vez mais estrangulada por leis e capitais, que vão expulsando os palestinianos. Tornando a vida deles impossível ali.

Cada repórter que chega não parte do zero. Há que levar em conta o que já foi coberto, onde estão os holofotes, e onde não estão. Sobretudo quando faltam meios e tempo. É importante ir onde faça mais diferença, acrescente, dê voz.

3. Teoricamente, não é só Israel a travar a entrada de jornalistas em Gaza. O Egipto contribui para isso na fronteira de Rafah. Mas na prática é Israel, porque o Egipto não está interessado em fazer frente a Israel. Coordena qualquer entrada de pessoas ou bens com Israel (enquanto por baixo dos panos há quem pague milhares de dólares para passar a fronteira). A ditadura egípcia não quer manifestações em casa, não quer revoltas da Praça Tahrir, não quer a Irmandade Muçulmana encorajada pelo Hamas. Prende contestatários, bloqueia media alternativos. Muito haverá a cobrir também sobre a normalização dos regimes árabes com Israel. O 7 de Outubro interrompeu planos e negócios. Fiquem atentos à Arábia Saudita.

4. Uma última nota. Cobrir Gaza não rivaliza com cobrir a Ucrânia. O que tira repórteres aos lugares é a falta de meios. E para haver meios é preciso haver quem queira as reportagens. Quem siga, assine, apoie jornalismo.

Se o 7 de Outubro tomou o espaço mediático, isso não significa que a vida e morte em Gaza estejam a ser cobertas, para além do esforço heróico dos repórteres palestinianos (os Gigantes do Ano de 2023). A Ucrânia não está cercada, a morrer à fome, tem o apoio do Ocidente, continua a ser coberta. Na sombra está a extinção de um mundo na Palestina, dos pastores aos souks históricos, das oliveiras às igrejas e mesquitas. Milhões de refugiados, dentro e fora, a quem o mundo deve uma resposta desde 1948. E o sem precedentes de não entrarem jornalistas em Gaza desde 7 de Outubro.

Nunca precisámos tanto de jornalismo, além das redes sociais (que, no caso da Palestina, têm sido muitas vezes as únicas janelas).

E não haverá jornalismo sem leitores. Certamente não haverá reportagem internacional. Se querem repórteres no terreno, por favor assinem jornais/revistas: hoje.

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