Eis Rita Calçada Bastos na sua versão Chaplin, a “rir do ridículo que somos”

Fechando a sua trilogia existencial, a encenadora parte À Procura de Chaplin. No São Luiz, a partir desta quarta-feira, o nonsense cruza-se com a Bíblia.

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Luciano Amarelo encarna o clown da peça, uma projecção de Charlie Chaplin Eduardo Rosas
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Depois de ter andado à procura de si mesma em Nina, personagem de A Gaivota, de Tchékhov, e na obra de Clarice Lispector, Rita Calçada Bastos partiu para À Procura de Chaplin sem qualquer guião. Sabia apenas que o caminho que começara a esboçar nesta trilogia de questionamento existencial a empurrava para “um novo estado de consciência” e que a figura de Charlie Chaplin a atraía pela “capacidade extraordinária de fazer comédia a partir da sua própria tragédia”, conforme explica a autora e encenadora ao PÚBLICO.

Assim, depois de enfiar o passado em gavetas bem arrumadas – nas duas obras anteriores –, é agora tempo de se dedicar ao presente. Só que há uma enorme diferença entre dar sentido ao que ficou para trás e decidir dar um passo em frente, sem saber ainda qual a direcção a tomar. Para esta peça final, que assenta desta quarta-feira até domingo, dia 28, no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, as únicas certezas que levou consigo foram a de queria “rir do ridículo que somos e do comezinho do quotidiano”, e quase dispensar a palavra.

Numa inesperada sintonia com o universo clown que a autora queria explorar em À Procura de Chaplin, o espectáculo começou a construir-se graças a um episódio inusitado: no primeiro dia de trabalho, ao entrar para a sala de ensaios, a equipa encontrou uma mesa sobre a qual repousava uma Bíblia. Quando alguém retirou o livro, para se sentar na mesa, esta partiu-se. Foi-se a mesa, ficou a Bíblia. Depois, foi uma questão de abraçar o que o acaso propunha ao grupo: a partir daí, antes de começar o ensaio, cada participante pegava no volume e lia uma passagem aleatória. “E eram coisas que se sincronizavam com as improvisações que estávamos a fazer”, espantou-se a encenadora. “Pareceu-me, por isso, que seria interessante brincar com as leis divinas”. Daí que, à sua pesquisa sobre o imaginário de Charles Chaplin, entre biografias e filmografia, tenham acabado por juntar-se citações bíblicas que preenchem os intertítulos projectados no palco.

A apropriação destas citações bíblicas é integrada de forma, por vezes, literal. É assim que “este é o meu corpo, tomai e comei” é a deixa para o clown (Luciano Amarelo) desatar a comer partes do seu corpo consumando a “liberdade de interpretar convenções e seriedades que estão instituídas socialmente”, reclama a autora. A liberdade de disparatar e assumir o nonsense é, aliás, uma das pedras de toque de À Procura de Chaplin. E, portanto, livrando-se das palavras ou chamando-as à boca como uma algaraviada incompreensível, resta uma diversão infantil, “uma vertigem que tenta resgatar o público para um espaço em que não interessa se está a perceber ou não, mas sim a diversão com o disparate e o delírio vivido [em palco].

Esse lugar de inocência é interrompido, por instantes, quando o clown assume um esgar de pânico, ao olhar para a plateia e aperceber-se de que está a ser observado. A sua liberdade fica ferida, e esmorece diante dessa súbita realidade. Rita Calçada Bastos já estava a trabalhar sobre a cena quando, na leitura da autobiografia de Chaplin, encalhou na descrição daquele que o mítico actor a caminho de ser cineasta “achava que ia ser o seu grande espectáculo” e que, afinal, se revelou “um enorme falhanço”. “A partir desse momento”, explica a encenadora, “Chaplin passou a ter pânico do público – e, passado pouco tempo, descobriu o cinema e passou a fazer filmes”.

O que vemos neste olhar assustado é, no fundo, uma das inquietações artísticas que movem a trilogia: “Quem sou na presença do outro? Consigo ser eu mesma? Ou preciso de esquecer-me que vocês estão aí para poder ser quem sou dentro de minha casa?” É uma interrogação transversal aos três espectáculos e que questiona também o papel de Rita Calçada Bastos como encenadora e actriz (cuja projecção em palco, nesta peça, é delegada na doppelgänger Carla Maciel). Foi Carla Maciel quem protagonizou com brilhantismo as peças anteriores e é ela quem, em À Procura de Chaplin, primeiro entra em cena, enquanto sobre a sua cabeça lemos que “uma mulher, uma actriz, em busca de si mesma, permanece calada”. Em busca de si e dos seus pares. Chamem-se eles Nina, Clarice ou Chaplin. Para que a incerteza do passo no presente seja, quanto mais não seja, um pouco menos solitária.

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