Abrir delicadamente

Chego pontualmente. Sou extremamente pontual. Levo um top curtinho para ostentar a insignificância da passagem dos anos no diâmetro da minha cintura abdominal.

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"Será que vamos sentir uma chama nostálgica, uma paixão anacrónica? (Quanto tempo dura o acne juvenil?)" Rita Lagarto
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Sou extremamente pontual. Cumpro horários. Chego a horas. Não deixo ninguém à espera. Uso relógio de pulso, acordo com despertador, tenho lembretes no telemóvel. Seja para uma reunião profissional, um encontro a dois, uma aula do ginásio ou o jantar de ex-colegas de liceu que já não se vêem há 25 anos — um intervalo de tempo onde uns breves minutos diluídos não iriam fazer diferença. Mas por algum motivo mantenho aquele aperto da campainha para as aulas. O pavor do segundo toque! Se me atraso dez minutos, sinto suores frios. “Vou levar falta! Vou perder a matéria! Vou ficar fora da sala!” Mesmo que a “sala” seja um restaurante absolutamente às moscas.

O convite apareceu inesperado numa das dezenas de grupos de WhatsApp em que somos subitamente incluídos. Sempre que a notificação “Pessoa-X-adicionou-a-ao-Grupo” aparece no meu telemóvel, questiono-me como seria esta operação se acontecesse no mundo real, e eu fosse abruptamente arrancada do meu sofá, elevada por uma garra-gigante de recolha de contentores e depositada noutro sofá com um grupo mais ou menos aleatório de pessoas que não conheço assim tão bem e algumas das quais não aprecio particularmente… Mas lá estava a mensagem: Kátia (com “K”) adicionou-a ao Grupo “TURMA 10.º C - 1997” acompanhada da fotografia redonda de 20 adolescentes de rostos imberbes, seguida de várias notificações: “OMG estes somos nós? / Emoji de boneco com cabeça a explodir / “Á” [sic] quanto tempo! | Meme do Donald Trump a acenar / LOL parece a stôra Elisabete AKA “A Encalhada” lembram-se?/ LOL / Fun! / Hahaha! / Emoji de bonequinho a rir com lágrimas a saltar para os lados + Emoji de bonequinho a rir com pingo na testa / WoW! Épico! Mt fixe! Vamos pôr a conversa em dia!” Uf...

Senti-me automaticamente exausta. Automaticamente relutante. Automaticamente incapaz. Um jantar do liceu? Quem é que no seu perfeito juízo marca um encontro com as memórias embaraçosas de há 25 anos? Ocorrem-me imagens do dia em que vomitei na primeira aula da manhã por ter estado a beber vodka até às quatro da manhã, quando disse aos meus pais que estava a estudar em casa da Sónia. Ocorre-me o meu primeiro beijo numa esquina do Bloco A. Ocorre-me o cheiro a cigarros escondidos atrás do pavilhão. Ocorre-me a capa do meu caderno de estudo, que forrei com recortes: uma mulher de ventre plano recortada de um quadro renascentista, o bilhete de autocarro da visita de estudo ao Porto, a capa do Manifesto Comunista do Marx e do Engels — na época tinha dois hamsters, e estes foram os nomes que lhes dei.

Cultivava com afinco a imagem da intelectual-irreverente-com-inclinação-sexy-à-esquerda, e mentia nos exames de optometria só para poder usar óculos. Ampliei a fotografia do grupo e lá estava eu de óculos e aparelho metálico nos dentes. Ao meu lado, o meu namorado (corpo esguio de atleta, rosto fustigado pela crueldade impune do acne juvenil… A superfície irregular do meu primeiro amor). “Claro que vou!”, escrevo num espasmo. Convenço-me de que vai ser bom, que vai ser fun! Os meus colegas tornaram-se informáticos, professores, trabalhadores do Estado, de empresas, da banca… do capital! Eu fui a única que seguiu Artes. Serei vista como a excêntrica, a fora da caixa! Assalta-me uma breve excitação por reencontrar o ex-namorado. Será que vamos sentir uma chama nostálgica, uma paixão anacrónica? (Quanto tempo dura o acne juvenil?)

Chego pontualmente. Sou extremamente pontual. Levo um top curtinho para ostentar a insignificância da passagem dos anos no diâmetro da minha cintura abdominal. O restaurante é um sushi-chinês-all-you-can-eat com bebida à discrição. (Emoji verde com olhos nauseados.) O buffet é self service (“serve serve-se”, como diz a minha avó, no seu sábio entendimento fiel à realidade e não à ortografia), só os pratos quentes é que são servidos à mesa.

Dou logo de caras com um senhor calvo (pele vermelha, botões da camisa a estoirar sobre a barriga saliente) junto às saladas frias, que num gravíssimo erro de raccord aparenta ser o meu ex-namorado. Acena-me. Faço um esgar míope e sento-me à mesa (há truques que não se esquecem). Peço as espetadinhas com molho agridoce para não ter de me levantar mais — a saia que trouxe teima em subir e começo a achar que exagerei na escassez do tecido da indumentária. As minhas ex-colegas usam todas camisolas extralargas e moms jeans como se diz agora. Trocam ecrãs de telemóvel: imagens dos filhos, do marido, do cão, de viagens a Formentera. Pouso os olhos desconfortáveis nas letras pequenas dos pacotinhos de soja em cima da mesa “Abrir delicadamente”.

— E tu Ana? O que fazes? —, as pestanas invulgarmente longas da Kátia apontam na minha direção.

— Sou atriz. E também escrevo. (Fazes novelas? Sei que me vão perguntar. Não, não faço novelas. Oh! Então não foste para a televisão?... Antecedo o tema. Preparo-me para ripostar como uma verdadeira artista-irreverente-com-inclinação-sexy-à-falta-de-dinheiro), mas essas perguntas não acontecem. Em vez disso:

— Tens filhos?—, não contava com esta. Engulo um trago de molho agridoce. Agarro num pacotinho de soja.

— Ainda não… (De onde é que saiu este “ainda”?! Veio agarrado nas espetadinhas?)

A Kátia pisca os olhos. As pestanas falsas batem umas nas outras. Trac! Trac! As outras moms observam-me como se estivessem a tentar decifrar qualquer informação confidencial num interrogatório do KGB. Torço o pacote de soja entre os dentes. Não abre…

— Que idade tens?

— Quarenta.

Silêncio. Silêncio na mesa. Silêncio na sala. Silêncio na rua... Ninguém respira. Si-lên-cio! Nem um ruído no espaço sideral! A minha interlocutora sorri. Os olhos esquecem-se de acompanhar a boca. Não sabe como se comportar. Rir? Não rir? Engasga-se no wasabi. Tosse. Cospe um bocadinho do verniz gel que tinha preso nos dentes. Os meus dentes esfrangalham a ranhura do pacotinho de soja… (Então? Não abre?!) Reviro o pacote entre os lábios.

— Bom… Ainda vais a tempo. Hoje em dia já há quem tenha aos 50 —, diz-me ela com o mesmo tom com que mentimos às crianças quando dizemos que a vacina não vai doer.

E agora? Digo-lhes que estou solteira? (“estou” ou “sou”?) Elas aguardam uma justificação. Uma alternativa. Um termo de responsabilidade. Não abro o jogo.

— Não vejo como uma missão. Se acontecer, acontece —, safo-me.

Tenho esta na manga, tipo paracetamol na carteira. Remato abocanhando o pacote de soja com força. O plástico cede. O pacote rebenta! Explosão. A Kátia estremece. A soja derrama-se: no meu decote, na barriga, nas pernas… Fora da caixa… A empregada chega à mesa com um jarro de sangria. Que alívio! Retomam a conversa… sobre Maiorca, anti-histamínicos, software de faturação… Limpo a soja da mama esquerda. (Os 40 não são os novos 30? Não está espalhado em tudo o quanto é Instagram, Facebook, Tik Tok, revista feminina, publicidade imobiliária? Ainda mal começou! Sinta-se jovem, por fora e por dentro! Sou eu? A encalhada? A stôra Elisabete é que era “a encalhada”!) Peço um copo de aguardente — não bebo sangria (mais essa!).

E saio antes de todos com o pretexto de ter horários a cumprir logo de manhã. “Sou extremamente pontual!” Despeço-me. Entro em casa e deito-me no sofá. Sinto a amálgama de aguardente, camarão e recortes de memórias a obstruir o meu ventre liso. Sou extremamente pontual. Chego sempre a horas. O que é que aconteceu? Como é que me atrasei nisto? O alarme não tocou? Não ouvi a campainha? Não vou ter filhos? Vou perder a matéria? Vou ter falta? Para sempre?

Abro o WhatsApp. O estado da minha imagem de perfil está vazio. Digito: “Abrir... delicadamente.”


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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