A Igreja e o Estado face aos abusos sexuais de menores

Responsabilidade civil e responsabilidade canónica.

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Segundo o Concílio Vaticano II, os três princípios que actualmente regem as relações entre a Igreja e o Estado são a autonomia, a independência e a cooperação. Uma das consequências destes princípios — presentes na Concordata (2004), tratado internacional assinado entre a Santa Sé e a República Portuguesa — é o facto de o Estado reconhecer à Igreja o direito de se governar pelas suas próprias leis, como pessoa jurídica internacional que é.

Porém, a autonomia entre o ordenamento jurídico da Igreja e o do Estado não significa ausência de colaboração, principalmente diante de factos que sejam ao mesmo tempo ilícitos canónicos e civis, como é o caso do delito de abuso sexual de menores.

Porém, esta cooperação não legitima uma ingerência indevida da Igreja no sistema jurídico do Estado, nem uma ingerência indevida do Estado no sistema jurídico da Igreja. O necessário é que ambos respeitem mutuamente a respectiva autonomia e competência jurídica nas matérias que lhes são próprias.

Assim, quando ocorre um delito de abuso sexual de menores no âmbito da Igreja, para além da responsabilidade penal do arguido, quer estadual quer canónica, poderão existir outras duas responsabilidades que afectarão aqueles que têm alguma relação com o arguido: a responsabilidade civil, dado que os actos cometidos, afectam toda a sociedade e são por isso legitimamente conhecidos e julgados pela lei do Estado; e a responsabilidade canónica, pois os mesmos actos, ao afectarem a comunidade da Igreja, são também conhecidos e julgados pela lei canónica.

A atribuição da responsabilidade canónica (e conexas reparações) rege-se pela lei canónica, e o seu foro competente são os tribunais canónicos, não tendo o Estado ou qualquer outra entidade externa competência jurídica para decidir em vez da Igreja.

Para que os tribunais canónicos atribuam responsabilidade canónica a um bispo ou outro superior hierárquico, requer-se, antes de mais, que o delinquente esteja ligado à Igreja por uma relação de dependência. Caso seja clérigo, o importante é perceber qual a natureza do vínculo que tem com o seu bispo (ou outro superior). É comum pensar-se que este vínculo se pode equiparar à relação de subordinação hierárquica de direito público ou à relação laboral entre empregador e trabalhador. Porém, a Santa Sé já esclareceu, em Nota do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos (2004) que «o presbítero não “trabalha” para o bispo», e que «o responsável directo do ofício é o presbítero e não quem lho conferiu». Assim, não é possível atribuir responsabilidade canónica a um bispo por crimes cometidos por um dos seus clérigos, a não ser que, ciente da situação, não tivesse aplicado os remédios canónicos previstos, ou tivesse negligenciado a devida vigilância e solicitude para que esse clérigo cumprisse as obrigações do seu ministério. Mas esta responsabilidade canónica será sempre atribuída pela justiça da Igreja (e não do Estado), como lembra o Papa Francisco na Carta Apostólica Motu Proprio Come una madre amorevole (2016).

De igual modo, a atribuição da responsabilidade civil (e das conexas reparações) rege-se pela lei do Estado e o foro competente são os tribunais estaduais, não tendo a Igreja competência jurídica para decidir em vez do Estado. Ainda assim, a doutrina canónica deve ser tida em conta pelo juiz do Estado, por remissão formal, ao atribuir responsabilidade civil aos superiores eclesiásticos por actos cometidos pelos seus clérigos. Assim o fizeram vários tribunais de outros Estados, ao reconhecer que entre o ministro de culto e a respectiva confissão não existe um contrato de trabalho.

A justa atribuição da responsabilidade civil e canónica passará sem dúvida pela fiel observância da lei da Igreja, da lei do Estado e da Concordata. Mas a atenção e o cuidado devidos às vítimas não se limitam ao âmbito jurídico-canónico. Por isso, todos os baptizados, movidos pela caridade, são chamados a levar aos feridos o bálsamo que repara e cura. Como fez o Bom Samaritano.

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