Cientistas propõem um “cenário reparador” alternativo para responder à crise climática

Artigo sugere pensar a resposta às alterações climáticas e à crise ambiental a partir de um cenário reparador, apostado na conservação da natureza, na igualdade económica e no bem-estar social.

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Plantas crescem perto de um lago à frente de um glaciar, na Áustria LISI NIESNER/Reuters
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Uma equipa de cientistas formulou um novo cenário geral para a humanidade, paralelo aos cenários apresentados pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), para se atingir uma situação de justiça ambiental e social, onde haja recuperação dos ecossistemas e da biodiversidade, e um controlo das alterações climáticas, mostra um artigo publicado na revista Environmental Research Letters.

“O cenário reparador representaria um mundo mais resiliente e equitativo com um foco na preservação da natureza, com vastas reservas naturais como uma solução climática a partir da natureza; uma economia de pós-crescimento; qualidade de vida e bem-estar social; igualdade e níveis altos de educação para as raparigas e para as mulheres, resultando numa taxa de fertilidade baixa com padrões de vida mais altos; uma mudança na dieta, com uma grande redução na produção de carne; e uma transição rápida em direcção às energias renováveis”, lê-se no artigo assinado por William Ripple, do Departamento de Ecossistemas Florestais e Sociedade, da Universidade Estadual de Oregon, nos Estados Unidos, por Christopher Wolf, dos Associados de Investigação de Ecossistemas Terrestres, em Corvallis, no Oregon, e por mais três investigadores.

Em 2021, quando o IPCC iniciou a publicação do sexto ciclo de avaliação das alterações climáticas, a análise olhava para o futuro da humanidade a partir de cenários socioeconómicos partilhados (SSP, sigla em inglês). Estes cenários traçam a evolução do aquecimento global mesclando não só as emissões futuras da humanidade e o tipo de resposta que se vai dar, mas também questões sociais e de conflito.

Resumidamente, no SSP3 realça-se o ressurgimento dos nacionalismos e os conflitos entre regiões, enquanto no SSP4 a tendência do mundo é de se tornar mais desigual. O SSP5 é um cenário desenvolvimentista graças ao uso dos combustíveis fósseis. Já o SSP2 é um cenário mediano, em que as tendências socioeconómicas seguem as tendências históricas. Finalmente, o SSP1 é o cenário mais optimista, em que o mundo segue um caminho cada vez mais sustentável.

Potencialmente, o cenário SSP5 é aquele em que o aquecimento global poderá ser o mais intenso, com as temperaturas médias a atingirem o patamar dos quatro graus acima do período pré-industrial. Neste contexto, para evitar aquele patamar de temperaturas seria necessário um enorme esforço para retirar todo o dióxido de carbono (CO2) a mais acumulado na atmosfera. Pelo contrário, o SSP1 é o cenário em que o aquecimento global seria o menos intenso. Na melhor versão deste cenário, a versão SSP1-1,9, os cálculos indicam que em 2100 o aquecimento global seria de apenas 1,34 graus acima dos valores pré-industriais – mais baixo do que a temperatura de 2023. Mas para isso também seria necessário retirar activamente CO2 da atmosfera.

É em relação ao SSP1-1,9 que o cenário reparador, proposto agora, se compara.

A grande escalada

William Ripple é ecologista e é director da Aliança dos Cientistas do Mundo. Nos últimos anos, tem lançado, juntamente com Christopher Wolf e outros investigadores de vários países, alertas sobre o estado do planeta e o risco de termos atingido pontos de não retorno.

“O primeiro passo para resolver um grande problema é identificá-lo com claridade e sensibilizar as pessoas sobre esse problema”, explica ao PÚBLICO William Ripple, justificando o foco que tem dado à crise ambiental que o planeta atravessa. “Vemos as alterações climáticas como um sintoma de um problema maior em que se ultrapassaram os limites ecológicos, a sobreexploração da Terra, que está a levar a muitas crises ambientais. Desenhámos o cenário reparador para enfrentar esta questão subjacente.”

No novo estudo, a equipa vai buscar vários indicadores planetários importantes, que têm servido para avaliar a saúde da Terra e a evolução do impacto da humanidade, como as emissões de CO2, a população humana, o produto interno bruto, a área de cultivo, a área florestal, a temperatura média do planeta, a concentração de gases com efeito de estufa, entre outros.

Mas, desta vez, os gráficos apresentados que mostram a evolução daqueles indicadores não começam na segunda metade do século XX, vão bastante mais atrás e iniciam-se em 1500.

“As magnitudes das mudanças desde 1500 são enormes. Por exemplo, as florestas diminuíram 21%, enquanto as terras de pastagem para o gado e as áreas agrícolas aumentaram seis vezes de área cada”, lê-se no artigo. “Em conjunto, os nossos resultados dos gráficos mostram um padrão forte para quase todas as nossas variáveis que é comparável ao clássico padrão do stick de hóquei observado originalmente para as temperaturas globais. Especificamente, os nossos resultados mostram uma grande escalada que começa por volta de 1850.”

Esta realidade necessita de uma “resposta urgente”, alerta Christopher Wolf, citado num comunicado da Universidade Estadual de Oregon. O crescimento civilizacional “levou a um aumento extraordinário de emissões de gases com efeito de estufa, alterando de uma forma dramática o uso das terras e provocando um declínio maciço da biodiversidade”, sublinha o investigador, que também é ecologista.

Planos para um mundo resiliente

O cenário SSP1-1,9 responde em parte àquela situação. De acordo com os cálculos para aquele cenário, prevê-se que haja uma reversão para alguns daqueles indicadores: uma diminuição na população humana a partir de 2050, na concentração atmosférica do CO2 e do metano, e a redução de áreas de pastagem.

Mas há outros indicadores que continuariam a aumentar com o SSP1-1,9, como a área agrícola, a concentração de dióxido de azoto e o produto interno bruto. Além disso, a equipa tem reservas sobre cenários que dependem da remoção activa de CO2, já que pode resultar num “falso sentimento de segurança e num adiar das acções necessárias para enfrentar as alterações climáticas”, lê-se no artigo. Por outro lado, os autores também põem em causa o crescimento económico infinito, que está patente.

“Tem-se tornado cada vez mais claro que o modelo de sempre não tem funcionado e que o crescimento económico infinito não é viável. Em vez disso, necessitamos de políticas económicas que guiem a humanidade em direcção a um padrão equitativo do uso de recursos”, afirma William Ripple. Um dos gráficos do artigo mostra que continuadamente desde 1820, os 10% mais ricos auferiram pelo menos 50% do rendimento mundial, o que mostra o nível de desigualdade económica que existe há mais de dois séculos.

“Por contraste a muitos cenários climáticos existentes, o cenário que propomos dá mais ênfase a enfrentar a desigualdade, a perda de biodiversidade e a outros desafios. Somando a isso, depende menos de possíveis desenvolvimentos tecnológicos para remover o CO2 da atmosfera”, diz o investigador. O cenário reparador envolveria a reversão de “não apenas algumas, mas todas as curvas” dos indicadores planetários, de acordo com o artigo. E também “iria focar-se na redução do consumo dos recursos primários para manter as pressões ambientais dentro das fronteiras planetárias”, acrescenta o estudo.

“O nosso cenário envolveria grandes mudanças socioeconómicas de longo termo com um foco na sustentabilidade e na justiça”, assegura William Ripple. A equipa defende que estas mudanças deveriam ser implementadas em pequenos passos, que seriam por sua vez alvo de avaliações. “Um exemplo seria uma taxa de carbono inicialmente adoptada pelos países de maior dimensão que poderia, por fim, tornar-se global”, refere o cientista.

Os investigadores admitem que seria um grande desafio implementar o cenário reparador que propõem, assim como o SSP1, tendo em conta a “tendência das emissões, a falta de vontade política e a negação social generalizada” acerca da situação da Terra, lê-se no artigo. Mas só incluindo este cenário no debate é que seria possível avaliar as suas qualidades e os seus deméritos. “É tempo de reconhecer que continuar na mesma linha de sempre não é mais viável para um planeta em perigo”, lê-se na conclusão do artigo. “Temos de começar a fazer planos para um mundo que dá prioridade à conservação, à resiliência e à igualdade.”