A geopolítica em 2024

Vivemos uma situação complexa e muito perigosa a nível internacional, denunciada por vários especialistas americanos como George Kennan, Henry Kissinger e John Mearsheimer.

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Na abordagem da política internacional no início de um novo ano não podemos cair na análise simplista (que só beneficia o infractor), de que tudo começou com a invasão da Ucrânia em Fevereiro de 2022 ou com o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro passado. Foi a posição do embaixador de Israel na ONU que o confirmou, ao tentar contestar as afirmações de Guterres de que o povo palestiniano está sujeito a um regime sufocante de opressão há 56 anos.

Vivemos uma situação complexa e muito perigosa a nível internacional, denunciada por vários especialistas americanos das Relações Internacionais, como George Kennan, Henry Kissinger e John Mearsheimer, este felizmente ainda vivo. Mas os nossos plumitivos analistas, que pululam nos jornais e televisões portuguesas, só conhecem e defendem os pontos de vista do governo americano, que implicam um branqueamento do passado.

Acontece que dois daqueles americanos há muito tinham chamado a atenção para os perigos de expandir a NATO para leste depois do fim da Guerra Fria, contrariando as promessas do Ocidente a Gorbatchov e Ieltsin. E que isso seria considerado pela Rússia uma ameaça existencial. Mas dada a debilidade deste país durante toda a década de 1990, o presidente Clinton sentiu-se autorizado a integrar na NATO a Polónia, Hungria e República Checa já em 1999, ano em que a organização interviria pela primeira vez numa acção militar, bombardeando a Sérvia durante três meses com centenas de mortos, incluindo muitos civis. Em 2002 inicia-se o processo de integração de mais sete países da Europa de Leste, culminando com a sua adesão em 2004. A Albânia e a Croácia entrariam na NATO em 2009.

Em 2007, na habitual Conferência sobre Segurança em Munique, surgiu a reacção, para alguns inesperada, de Vladimir Putin. Este afirmou sem rodeios que o avanço da NATO até às fronteiras da Rússia era para esta uma ameaça. Além de que o sistema de defesa antimísseis, previsto para alguns países do antigo bloco soviético, também era inaceitável. A NATO justificou esse armamento como uma garantia de defesa da Europa contra o Irão!? A partir daí Putin entrou na lista das personae non gratae dos meios de comunicação ocidentais, objecto de centenas de artigos e livros apresentando-o como um novo Hitler.

A revista Der Spiegel International, ao contrário do seu habitual porte pró-ocidental, publicou em 29 de Setembro passado um artigo sobre os desenvolvimentos que levaram à destituição do presidente ucraniano Viktor Ianukovich no golpe de estado orquestrado pelos americanos e seus aliados em 2014, para o substituir pelo pró-ocidental Petro Poroshenko. Mas, significativamente, a mesma reportagem incluía fotos de manifestações anti-NATO em Kiev, com milhares de pessoas nas ruas, em 2008!

Ora, é aqui que entra a figura de John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, analista das Relações Internacionais da corrente Realista, que faz um artigo na Foreign Affairs de Set/Out de 2014 afirmando que a crise na Ucrânia é culpa do Ocidente, confirmando o atrás referido.

O resto é conhecido, mas deve ser lembrado porque os plumitivos analistas nunca o referem. As principais potências europeias, França e Alemanha, apoiam a institucionalização dos acordos de Minsk, em 2014 e 2015, com o objectivo de federar e autonomizar as regiões russófonas da Ucrânia, que nunca seriam respeitados pelo governo deste país. Ao invés, os principais países ocidentais começam a fornecer e formar militarmente os ucranianos saudosos dos seus antepassados nazis.

Em Dezembro de 2021, ainda em plena pandemia, Vladimir Putin, que tinha aproveitado o golpe de estado de Maidan, em 2014, para reanexar a Crimeia, depois de um referendo, propõe uma conferência de segurança na Europa, com os aliados ocidentais, para tratar destas importantes questões. A sua proposta é recebida em tom jocoso e imediatamente rejeitada pela NATO e os Estados Unidos. Segue-se o início da “operação militar especial” em Fevereiro e os encontros de paz em Istambul no mês seguinte, bloqueados pelo Ocidente, sabe-se agora, pela interferência de Boris Johnson, que impõe a consigna “a Rússia tem que ser derrotada”.

É neste contexto que a situação deve ser analisada. Documentos como Extending Russia, de 2019, do think tank Rand Corporation, muito próximo do governo dos Estados Unidos, definem a necessidade de enfraquecer a Rússia de modo a impedi-la de se afirmar até como potência regional. Outros documentos explicam a necessidade de igualmente enfraquecer a China do ponto de vista económico, usando para isso, se necessário, o poder militar. Os analistas sérios e até isentos de antiamericanismo têm todos os meios para chegar a estas conclusões: os americanos não estão dispostos a aceitar a existência da Rússia e da China como parceiros na política internacional, como o fizeram durante os 40 anos da Guerra Fria e até antes. Para isso, inventam todo o tipo de provocações, como no caso de Taiwan, fornecendo biliões de dólares de armamento aos independentistas, esperando que a China também caia numa provocação idêntica à da Ucrânia.

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