Tempestade Tesla: do Autopilot problemático às peças defeituosas. “Fazemos os melhores carros”, diz Musk

Alvo de investigações, a Tesla tem tido várias fraquezas expostas. Musk insiste que tem “os melhores carros”, mas responsável de um serviço de pós-venda diz: “Ainda não resolvemos todos os problemas”.

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Quando a Tesla surgiu pela primeira vez, teve recepções díspares, criando instantaneamente uma legião de fãs e, ao mesmo tempo, um rol de cépticos, sobretudo no que dizia respeito à qualidade de construção e fiabilidade. Mas era inquestionável que a empresa, fundada em 2003, desde cedo se destacava nas soluções para a mobilidade eléctrica, apresentando autonomias que anulavam qualquer sentimento de ansiedade.

Estreou-se como fabricante automóvel com o Tesla Roadster (2008, tendo por base o Lotus Elise), mas foi com o Model S, em 2012, que deu o passo certeiro para se tornar uma referência entre os fabricantes de automóveis eléctricos, numa altura em que o parque movido a electricidade era praticamente inexistente (o Nissan Leaf, responsável por ter tornado o carro eléctrico mais democrático, foi lançado em 2010 — chegou a Portugal em 2011). Com uma enorme vantagem: enquanto o Leaf admitia percorrer menos de 200 quilómetros (e, nos testes da altura, verificou-se que era um número muito optimista e desfasado da realidade), o Model S apresentava-se capaz de fazer viagens de mais de 400 quilómetros com uma única carga.

Durante vários anos, a Tesla permaneceu na dianteira da corrida pela mobilidade eléctrica — trouxe o primeiro carro da sua marca para a Europa em 2009 e registou um milhão de veículos no continente em Outubro deste ano —, ao mesmo tempo que apresentava soluções tecnológicas engenhosas, como o Autopilot, um sistema avançado de assistência ao condutor, e, em 2016, anunciou que todos os seus veículos passariam a dispor de hardware capaz de uma experiência de condução totalmente autónoma.

E foi então que os problemas maiores começaram. Um acidente que resultou na morte do condutor de um Tesla Model S, com o sistema Autopilot activado, que não distinguiu um camião branco de um céu brilhante, pôs em causa a segurança do software da empresa. Posteriormente, porém, a autoridade americana responsável pela segurança rodoviária (NHTSA, na sigla original) determinou que o piloto automático não apresentava defeitos e que, segundo dados registados pelo próprio automóvel, o condutor deveria ter visto o camião sete segundos antes do embate, o que lhe daria tempo para agir. A investigação também concluiu que o condutor não travou ou tentou mudar de direcção.

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Nas últimas semanas, a Tesla tem enfrentado uma verdadeira tempestade Reuters

Os casos de acidentes repetiram-se, com vítimas mortais ou gravemente feridas. Em 2018, por exemplo, um Tesla em piloto automático despistou-se, resultando na morte do condutor (mais tarde, foi revelado que o condutor não tinha as mãos no volante e que estava a meio de um videojogo no telemóvel quando a colisão ocorreu). Mas foi no âmbito deste último caso que se ficou a saber, através do testemunho do então director do software Autopilot da Tesla, Ashok Elluswamy, que o vídeo de 2016 em que a Tesla promovera a sua tecnologia de condução autónoma fora encenado para mostrar capacidades que o sistema não possuía. E já este ano, em Março, um Model Y com o Autopilot activado não detectou a presença de um autocarro e atingiu um adolescente de 17 anos a 72km/h — o jovem sofreu ferimentos graves.

Só que, agora, uma investigação do The Washington Post revela que o Autopilot, disponível nos EUA com a função Autosteering, que permite realizar ultrapassagens em vias com separador central e mais de uma faixa no mesmo sentido, é usado em estradas onde não deveria ser permitido e isso foi a causa de pelo menos oito acidentes, com vítimas mortais ou com ferimentos graves.

Um dia depois da publicação da reportagem, a Tesla procedeu à recolha de mais de dois milhões de veículos nos Estados Unidos equipados com o sistema avançado de assistência ao condutor Autopilot para instalar novas salvaguardas. Na Europa, não houve qualquer ordem de recall, tendo a agência responsável pela homologação dos modelos norte-americanos em solo europeu explicado que as funções do Autopilot disponibilizadas nos dois mercados não são iguais, até porque há diferenças nas características específicas permitidas no nível 2 nos Estados Unidos e na Europa. As diferenças residem, por exemplo, na forma como é efectuada a “monitorização dos condutores e no aviso dado ao condutor quando o sistema é utilizado de forma abusiva”, afirmou o porta-voz da RDW dos Países Baixos.

Enquanto isso, informou a NHTSA, a investigação sobre o Autopilot permanecerá em aberto, estando o organismo a monitorizar a eficácia das soluções da Tesla. A Tesla e a NHTSA realizaram várias reuniões desde meados de Outubro, noticiou a Reuters, para discutir as conclusões provisórias da agência sobre a potencial utilização indevida do condutor e as soluções de software propostas pela Tesla.

Defeitos ocultos

Ao mesmo tempo que a Tesla se vê obrigada a uma megaoperação de recall nos EUA por causa do sistema de condução autónoma, uma investigação da Reuters chama a atenção para o facto de, durante anos, a empresa ter colocado o ónus da culpa nos utilizadores quando confrontada com a avaria de componentes quando sabia que estes eram defeituosos.

Os documentos, datados entre 2016 e 2022, incluem relatórios de reparação dos centros de assistência da Tesla a nível mundial; análises e revisões de dados por engenheiros sobre peças com elevadas taxas de avaria; e memorandos enviados aos técnicos a nível mundial, instruindo-os a dizer aos consumidores que as peças avariadas nos seus automóveis não apresentavam qualquer defeito. E os registos e as entrevistas revelam pela primeira vez que o fabricante de automóveis sabe há muito mais tempo sobre a frequência e a extensão dos defeitos do que revelou aos consumidores e aos reguladores de segurança.

Nem a Tesla nem o seu principal executivo, Elon Musk, responderam a perguntas pormenorizadas no artigo da Reuters. Musk reconheceu alguns problemas de qualidade de construção com os Tesla no passado, particularmente no Model 3 de entrada de gama, mas também diz que os seus carros não têm rival. “Fazemos os melhores carros”, disse ele sobre a Tesla num evento do New York Times no mês passado. “Quer me odeiem, gostem de mim ou sejam indiferentes, querem o melhor carro ou não querem o melhor carro?”

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A Tesla disse num pedido de recall que os controlos do sistema de software do piloto automático “podem não ser suficientes para evitar o uso indevido do condutor” SEBASTIAO ALMEIDA

Ao longo dos anos, a Tesla procurou atribuir a responsabilidade pelas falhas frequentes de várias peças aos proprietários dos automóveis, alegando “abuso do condutor” ou “uso indevido do veículo” — expressões que constam de um memorando de Fevereiro de 2019, partilhado com os centros de serviço pós-venda da marca, sobre como deviam explicar aos clientes que se queixavam de falhas na suspensão traseira. Porém, os registos da Tesla revelam o conhecimento alargado da empresa sobre problemas sistémicos de suspensão e direcção.

Uma série de falhas na suspensão em 2016 na China, com alguns dos primeiros clientes a relatarem que uma roda dianteira tinha caído ao rolar a baixa velocidade no seu carro desportivo de luxo Model S, o primeiro veículo produzido em massa pela Tesla, acabaria por conduzir a um recall, após a pressão das autoridades chinesas.

Na altura, os engenheiros da Tesla, de acordo com os registos da empresa que documentaram meia dúzia de incidentes desse tipo, descobriram que o braço de suspensão em liga de alumínio partiu-se. Mas, entre 2016 e 2020, a Tesla resolveu cerca de 400 reclamações que envolviam falhas na suspensão traseira. “O colapso da suspensão é aterrador para o cliente”, escreveu em 2016 Riccardo Dong, um engenheiro da Tesla na altura sediado na China, na plataforma de resolução de problemas da empresa. “Muitos proprietários estão a pedir uma recolha.” Contactado agora pela Reuters, Dong escusou-se a tecer comentários sobre o caso.

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Reuters

Em Setembro de 2020, os engenheiros da Tesla na Europa examinaram o longo historial de falhas nas suspensões traseiras. Valentin Oetliker, um engenheiro e estagiário da empresa sediado em França, mostrou-se alarmado com o facto de a peça ter uma “elevada taxa de avarias”, apesar de ter sido redesenhada. Numa análise escrita para outros engenheiros, observou que muitos clientes estavam insatisfeitos por pagarem as reparações em veículos recentes. Na altura, cerca de 5% dos 12.858 Model S e Model X em circulação nos mercados do Sul da Europa e do Médio Oriente tinham necessitado de reparações devido a falhas nesse componente, de acordo com um cálculo da Reuters sobre os dados comunicados por Oetliker, que se escusou a comentar. A Fugas tentou obter um comentário dos responsáveis pela comunicação da Tesla para o Sul da Europa, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.

Nesse mesmo mês, numa carta de 3 de Setembro de 2020, dirigida aos reguladores norte-americanos, a Tesla negou a existência de quaisquer defeitos nas mesmas ligações que os seus engenheiros tinham determinado serem defeituosas. A empresa disse à NHTSA que não faria o recall da peça para clientes dos EUA, apesar de o ter feito no mês anterior na China.

Outros componentes que apresentam problemas são os semieixos e as cremalheiras de direcção, mais complexos e dispendiosos de consertar ou substituir. E mais do que um engenheiro fez questão de dizer que o problema não tinha nada que ver com danos causados pelos clientes. A engenheira Anastasia Skolariki, que estava a resolver reclamações de clientes para a Tesla na Europa, escreveu em Maio de 2020 a outros engenheiros e técnicos que o problema era uma questão de design “e não um comportamento abusivo da parte do cliente”. A empresa precisava cobrir as reparações nos carros dentro da garantia, disse ela, “não importa quantas vezes o veículo chegue ao serviço com o mesmo problema”.

Outro problema registado nos Tesla novos foi uma falha súbita na direcção assistida. Andrew Lundeen, de Santa Rosa, Califórnia, contou à Reuters que estava a conduzir o Model 3 de 2018 da sua mulher, em Agosto, quando passou por cima de uma lomba e perdeu a direcção assistida. Quando procurou os serviços da Tesla, ficou a saber que um cabo da direcção hidráulica estava corroído e foi-lhe apresentada como causa a ida à lavagem automática. O arranjo, que implicou a substituição da cremalheira de direcção, custou-lhe 4400 dólares (mais de quatro mil euros). E Lundeen questionou: “Este é o único carro de que já ouvi falar em que uma lavagem de carros pode danificar a cablagem.” A resposta que recebeu chocou-o: “Não somos uma empresa com cem anos como a GM e a Ford. Ainda não resolvemos todos os problemas.”

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