História com sabor a Natal, por ocasião do 2.º Fórum Mundial dos Refugiados

A jovem Maryline, de origem síria, portuguesa de adopção e por sua livre e soberana vontade, acaba de prestar juramento de bandeira pela Força Aérea portuguesa. Possamos estar à sua altura!

Marilyne I, 2021 [1]

“Ao grupo de uma vintena de estudantes, vindos da Síria por estrada, que embarcariam nessa madrugada em Beirute, juntar-se-iam ainda dois ou três vindos de avião de países limítrofes, outros que já se encontravam no Líbano e a Marilyne [2] que só se juntaria a nós em Istambul.

A Marilyne, com 18 anos acabados de fazer, viajaria de Jeddah para a Turquia, sozinha. Marcámos encontro na área de trânsito do aeroporto de Istambul, onde faria escala com o grupo de sírios com quem havia já embarcado em Beirute. E enquanto o grupo se dirigiu para a porta de embarque para Lisboa, coube-me ir em busca de uma miúda, cuja fotografia tipo passe levava comigo e que apenas me mostrava um rosto de uma teenager, de olhos claros, envolto numa abaya negra.

Tínhamos combinado o encontro na zona de trânsito central do velho aeroporto que, na altura, até nem era assim tão grande, junto de uma loja com uma marca britânica famosa para não haver margem de erro. Mas nada de Marilyne. Dispunha do seu número de telefone e do seu endereço electrónico, mas nenhum sinal me chegava por essas vias. O seu voo anterior aterrara já, tinha-me certificado nos ecrãs. Dei mais tempo, mas naquela madrugada, depois de uma noite em branco, a agilidade mental não era o meu forte e só tínhamos pouco mais de uma hora à nossa frente para conseguir apanhar o voo de correspondência.

Comecei a inquietar-me. Fustigava com o olhar todos os vultos femininos num raio de cem metros. Depois, após alguns cálculos arrojados, corri para a porta de embarque do voo para Lisboa, esbarrando em várias pessoas e atropelando carrinhos e crianças, não fora o desembaraço da rapariga tê-la impelido a queimar etapas e já lá estar à nossa espera... mas não, nada de Marilyne.

Fiz o caminho em sentido inverso, ainda mais ansiosa... Chegada ao ponto de encontro, a certa altura, com o tempo já em franca contagem decrescente, quando o desespero me começava a ganhar, olho para uma das montras da loja em questão e deparo-me com uma miúda franzina de jeans desbotados, sentada no chão, com um ar entre o reguila e o amedrontado... Incrédula, pergunto 'Excuse-me, are you Marilyne?'. Com um pulo, põe-se de pé, um grande sorriso de menina grande e uma voz suave: 'I am...'.

A Marilyne da fotografia, mas sem a abaya que certamente fora encafuada nalgum saco mal levantara voo da Arábia Saudita, dera lugar a uma adolescente como todas as outras da sua idade na nossa época globalizada... despachada, mas sem conseguir esconder um ar um tanto assustado. Não nos foi, no entanto, possível trocar muitas mais palavras, talvez apenas coisas práticas como saber das bagagens, do seu passaporte e do seu visto para depois desatarmos as duas a correr para a porta de embarque do voo para Lisboa, que era, como quase sempre acontece, bem lá nos fundos de um imenso corredor, onde o grupo nos aguardava também já nervoso com a nossa ausência. Isto foi em 2015.

Hoje, em 2021, a Marilyne está quase a terminar o mestrado em fisioterapia. A sua adaptação a Portugal e à universidade foi um grande desafio que ela superou com uma enorme força de vontade, capacidade de resiliência e muita tenacidade. Nem todos os momentos foram fáceis, a Marilyne teve altos e baixos, mas conseguiu ultrapassar as dificuldades, sem nunca perder a sua doçura e é hoje uma rapariga madura, equilibrada e responsável.

Quando chegou a Aveiro, não dizia uma palavra em português. Hoje fala fluentemente, até com um ligeiro e intrigante sotaque meio-açoriano, meio-beirão, conversa com todo à vontade com os pacientes dos vários estágios que já fez de Viseu a Aveiro, discute com qualquer um com grande desenvoltura sobre o código da estrada e os sinais de trânsito, pois até já tirou a carta de condução e comprou um carro em décima milionésima mão e ai de quem se lhe meta à frente nas rotundas ou lhe apite ou lhe diga impropérios, pois desconfio que até já os saberá devolver com aquela pronúncia mais aberta das gentes do norte.

Fora disso, a Marilyne é uma rapariga encantadora, sempre correctíssima, de trato afável e muito solidária, preocupada com os outros e com o que a rodeia. Os seus pais têm todas as razões do mundo para terem orgulho naquela filha. Nunca ousei perguntar-lhe porque tenho a certeza da resposta, mas aposto que o sonho da Marilyne é arranjar emprego, comprar uma casa e trazer os seus pais para Portugal. Todos fazemos figas para que este sonho se torne em breve realidade (…)”.

Foto
A plataforma fundada por Jorge Sampaio beneficiou centenas de estudantes sírios desde 2014 Adriano Miranda (arquivo)

Marilyne II, 2023, em jeito de post-scriptum

Há uns tempos largos que não tinha notícias da Marilyne. Sabia que começara a trabalhar numa clínica de fisioterapia, depois de concluído o mestrado e que estava a reorganizar a sua vida, fechado o ciclo da formação universitária.

Para estudantes que não dispõem de retaguarda familiar em Portugal, esta era e é, quase sempre, uma etapa de transição muito exigente, cheia de escolhos e desafios, uma vez que é necessário procurar casa e emprego e, sobretudo, alargar o espaço vital muito para além da bolha académica.

Rapariga desembaraçada, rápida de pensamento, subtil observadora, a Marilyne teve, porém, algumas hesitações sobre o rumo a seguir. Sem dúvida que queria trilhar um caminho que lhe assegurasse autonomia e independência financeira, o que o exercício da sua profissão lhe proporcionaria, pelo menos até certo ponto, sabendo nós que os salários em Portugal nem sempre permitem aos jovens prover ao seu sustento quando terminam os estudos e ingressam no mercado de trabalho.

Mas, por outro lado, a Marilyne estava tentada a aprofundar os seus conhecimentos em fisioterapia, a estudar mais, a explorar alguns aspectos e áreas mais especializadas da sua formação. Assim, abraçou o projecto de completar um doutoramento, em que trabalhou afincadamente para concorrer às bolsas de investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia, ao mesmo tempo que começou a trabalhar aqui e acolá.

Mais tarde, soube que o seu projecto de doutoramento não fora bem-sucedido, mas encorajei-a não desistir e a aguardar por um momento mais oportuno. Às vezes as ideias são boas, apenas o momento não é o mais acertado. O que hoje pode fracassar e se aparenta a um caminho sem saída, amanhã pode revelar-se uma opção bem sucedida, tudo dependendo das circunstâncias, não é que eu tenha uma visão determinista da vida, mas cada vez mais me dá a sensação de que há um tempo certo para cada coisa …

Depois desse desaire, por qualquer razão, perdi o contacto com a Marilyne até que há uns dias atrás recebi um e-mail dela, talvez um dos mais espantosos da minha vida inteira. A Marilyne não vinha anunciar-me que ia para a Alemanha, os Países Baixos ou o Reino Unido, o que não constituiria motivo de surpresa de maior, mas porventura apenas de alguma mágoa; a Maryline também não vinha comunicar o seu casamento próximo ou recente, nem tão pouco a maternidade, ocasiões de júbilo que são sempre festivas e enternecedoras. Não. A Maryline vinha tão só convidar-me para estar presente no seu juramento de bandeira, em meados de Dezembro.

Confesso que fiquei, por momentos, incrédula, fulminada por um arrepio feito de emoções ao rubro e de uma explosão de alegria – a jovem Maryline, de origem síria, portuguesa de adopção e por sua livre e soberana vontade, a prestar juramento de bandeira pela Força Aérea portuguesa! Que generosidade a sua, que coragem, que determinação! Que mais extraordinária, definitiva e bela maneira de acabar com aquela conversa do “eles e nós” que nos põe uns contra os outros e cava trincheiras entre as pessoas.

Que história mais genuína para contar e partilhar por ocasião do encerramento do 2.º Fórum Mundial dos Refugiados, que decorreu estes dias em Genebra, organizado pelo ACNUR, em que a Nexus 3.0, uma associação focada na promoção da educação, ciência, arte e cultura em contextos de fragilidade, conflito e violência, participou, tendo integrado a delegação oficial portuguesa. A Nexus 3.0 submeteu neste Fórum vários compromissos de acção para os próximos anos, destinados a contribuir para a realização de objectivos fixados pelo ACNUR, como sejam conseguir que até 2030, 15% dos refugiados tenham acesso ao ensino superior contra os 5% actuais, de que é já exemplo o programa de bolsas de estudo GALP para estudantes refugiados da Ucrânia; criar condições para que 50 raparigas afegãs possam continuar a estudar em Portugal no âmbito da iniciativa “Farol de Esperança”, apoiada pela AIMA, por instituições do ensino superior e por parceiros do sector privado; ou, ainda, impulsionar o papel do ensino superior na criação de sinergias entre as intervenções de cariz humanitário, focadas no desenvolvimento e na consolidação da paz (o chamado triplo nexo).

Oxalá todos estes esforços contribuam para alimentar muitas outras histórias, como a da nossa compatriota Marilyne, exemplar a todos os títulos. Antiga estudante da Plataforma dos Estudantes Sírios, estou segura de que, estivesse o Presidente Jorge Sampaio entre nós, seria certa a sua presença no juramento de bandeira de Maryline, em homenagem ao seu percurso e para lhe manifestar gratidão, em nome do seu indefectível orgulho patriótico. Possamos estar à altura!

Festas Felizes e Bom Ano de 2024,

Helena Barroco, em nome da Nexus 3.0

[1] História contada inicialmente em A minha terra é linda – história dos estudantes sírios em Portugal, Lisboa, Âncora, 2021 e aqui reproduzida, excepto a parte II, que é nova.

[2] Nome fictício.

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